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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Experiência ou Sofrimento?

A experiência que escreverei não é mística. Também não é inédita, pois a vivi conscientemente hoje e ontem, e devo tê-la repetido inconscientemente diversas outras vezes na vida. O evento que vou descrever é absurdamente simples, portanto, não crie expectativas, pois vai se decepcionar. Tudo que lhe peço é que tenha paciência para acompanhá-lo até o fim. Talvez a reflexão que deriva deste evento faça algum sentido.

Nesta manhã, 23 de agosto de 2017, fazia muito frio quando saí de casa. O celular no qual escrevo agora indicava 13° e a sensação, com o vento, devia ser ainda mais baixa. Este mesmo tempo quase me congelou na segunda-feira (hoje é quarta), ocasião na qual levei a jaqueta até a sala mas a deixei no sofá, imaginando que iria esquentar durante o dia e pensando "Não vou ficar carregando este trambolho o dia inteiro à toa". Tanto ontem quanto hoje eu me precavi, saindo com uma blusa, uma jaqueta e luvas (uma das quais com um furo no dedo indicador). O frio ainda estava lá e eu estava plenamente consciente dele, sentindo-o pelo vento gelado no rosto e nas pernas, mas com as mãos, braços e peito perfeitamente protegidos. O fato é este: Experimentei o frio (isto é diferente de deduzi-lo intelectualmente, presumi-lo,  imaginar que está frio lá fora enquanto você está todo protegido sob cobertores, etc.), o vivi realmente, mas não o sofri. Na segunda o frio foi um sofrimento. Hoje o frio era o mesmo, mas foi apenas uma experiência.
Enquanto caminhava rumo ao ponto de ônibus desfrutava aquela experiência e refletia sobre a mesma. Ora, a temperatura era exatamente a mesma, mas pequenas mudanças na situação (concretamente, não apenas em minhas inclinações internas, como se esperaria em um artigo sobre auto-ajuda) converteram um cenário de sofrimento em suave experimentação, quiçá, deleite. Expandi este pensamento para as demais situações da existência humana, tão terrivelmente cercada de sofrimentos, e pensei no quão fantástico seria poder não expurgar os sofrimentos, que são situações inerentes à existência, mas convertê-los em experimentação. Se você pesquisar um pouco descobrirá minha ideia de divindade: Nossa ideia abstrata de divindade pressupõe que ela seja perfeita e plena. Ser pleno pressupõe, obviamente, que não seja incompleto, que não lhe falte nada. Uma entidade isolada, porém, seria incompleta, pois lhe faltaria a experiência de alteridade. Se esta divindade criasse o primeiro outro, teria a experiência de um amigo, faltando a do inimigo. Enquanto faltarem experiências, esta divindade não será plena, portanto, não será divina. Criado o terceiro, haverá a experiência do amigo, do inimigo, mas não a do convertido (seja de amigo que virou inimigo, seja o inimigo que virou amigo). Criados todos estes, faltará a morte. Criada a morte, será necessária a experiência de uma vida satisfeita e de uma vida infeliz. Você percebe os desdobramentos disto? Para que exista a divindade e para que ela seja plena todas as possibilidades de formas de existir, de viver, de experimentar e desfrutar a vida precisam ser criadas e vividas, caso contrário, a divindade não será plena, não será divina. Por favor creia-me, quando postulei esta ideia nunca a havia lido em qualquer lugar, porém, depois, descobri que não era inédita, sendo compartilhada por muitos antes de mim. Para a cultura vaishnava Krishna é, entre outros atributos, "O Desfrutador Supremo". Você consegue perceber a conexão com a proposta acima? Veja, não estou compondo esta reflexão para convertê-lo a esta ou aquela religião, tampouco fundar uma religião, sendo que eu mesmo me declarei ateu por muitos anos, mas quero que faça o esforço intelectual de se inserir dentro da hipótese da existência de uma divindade, mesmo sem crer nela, para juntos identificarmos novos desdobramentos para a mesma.
Se toda a criação existe para experimentação da divindade, sendo que nós mesmos seriamos desdobramentos da divindade enquanto experimenta as possibilidades necessárias para a sua própria plenitude (um processo de divinização, talvez. Poderíamos inferir: É o ato de criar que diviniza o criador), precisaríamos concluir que ainda que existam intempéries pelo caminho, na crianção "nenhum princípio é funesto." (se você não se surpreendeu ao recordar que isto está na Bíblia, estamos juntos no caminho certo). Se assim é, ainda que todos os eventos sejam necessários para o processo de experimentação, nem por isso deveriam ser sofrimentos terríveis e irreparáveis. Enquanto eu refletia sobre o frio, desejei ser capaz de levar isto ao mundo. Não queria expurgar o frio, fosse brando ou severo, assim como o calor, a fome, a morte, a doença, mas queria ser capaz de libertar cada "próximo" destes eventos vividos como sofrimentos, mantendo-os todos, mas convertidos em experiências. Repito, assim como não quero criar uma religião, também não quero compor um livro de auto-ajuda, auto-hipnose, tampouco um manual de resignação. Não é para engolir a dor a seco. É para deixar de sofrê-la com ações práticas. Manter o frio (que é uma característica natural, alheia ao nosso controle), mas garantir que não se sofra mais com ele, assumindo a responsabilidade de que cada indivíduo humano tenha acesso às "duas blusas" como eu tive, esta manhã. Que exista o calor, mas não a morte por desidratação, havendo água, "leite, mel" e cerveja para todos. Que exista a doença, mas que a esta se siga o desejo desesperado do médico em curar, não a torpe busca dos médicos atuais em obter lucros crescentes e comissões pelos medicamentos e materiais cirúrgicos que utilizam. Mesmo a morte seria experimentada como a saudade do que foi, mas não o sofrimento, pois haveria paz nos corações de quem ficou, seja pela certeza de um reencontro posterior (lembre-se que estamos dentro de uma hipótese teísta), seja pela simples tranquilidade de ter sido pleno o convívio enquanto existiu.
Pode parecer utópico (e não seria a primeira utopia que eu iria propor!), mas me parece natural e necessário. O caminho lógico para o ser humano, e imperativo para os ditos religiosos. Veja, independente de vossa religião, se é que tens alguma, note o salto espiritual que seria dado por cada religião enquanto instituição e por cada participante enquanto individuo se estes e aquelas se reconhecessem como parte da divindade e co-responsáveis pelo processo divinatório da mesma. Reconhecessem então suas experiências como necessárias a este processo, portanto fora do terrível ciclo de "crimes e castigos", sem culpas, mas com responsabilidades. Se cada religião e religioso deixasse de suplicar milagres e decidissem construí-los, com justiça, equidade e benevolência. Uma religiosidade tornada desperta e consciente seria capaz de "renovar a face da terra", mantendo todos os tipos de experiências, mesmo aquelas que nos parecem negativas, mas expurgando o sofrimento. Parece-me, finalmente, ser este então o papel da religião: o de promover a emancipação espiritual do religioso, fazendo-o agente ativo, consciente e responsável pela "espiritualização" do mundo, não numa luta desesperada por conversões, mas pela responsabilidade autêntica pelo resgate do próximo das garras do sofrimento. Não seria isto, afinal, a tão sonhada salvação?

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