Desde que me tornei budista
venho flertando, timidamente, com o vegetarianismo, porém, como o budismo que
eu prático não determina esta prática -algo realmente cômodo para mim-
continuei me lançando sobre picanhas, costelinhas e companhia.
Tempos depois comecei a ler a
respeito do hinduísmo, sobretudo Krishna, e, obviamente, seus adeptos são
vegetarianos. Como não me converti ao hinduísmo -cômodo para mim, não?-
continuei me lançando sobre picanhas, costelinhas e companhia. Há pouco tempo vi
matérias em mídias sociais comparando quantas pessoas a carne de um bovino
alimenta e a multidão que poderia ser alimentada com os recursos consumidos
para criar este único animal. Pela primeira vez a ideia do vegetarianismos fez
sentido lógico para mim, ultrapassando as enevoadas e românticas justificativas
dadas pelas religiões e entusiastas, porém, como a mudança era radical demais,
não queria forçar minha família a mudar comigo, sobretudo onerar minha esposa
com o preparo de refeições distintas por uma causa que ela sequer abraçara -
cômodo (e o resto você sabe. Picanha, sushi e etc.).
Para ser justo a época de minha
vida que mais cheguei perto das corretas práticas alimentares - conforme
budistas tradicionais e hinduístas acreditam que são- foi em meu passado
cristão, período no qual anualmente eu rompia com a carne em observação à
quaresma. Ironias da vida: estive mais próximo dos deuses não cristãos enquanto
estive sob orientação do deus cristão. Mas, ora, qual o nome de Deus? (Leia
Milagre Eucarístico)
O texto de hoje fala sobre
conversão, alimentação, culto e comunhão, mas não é um texto católico, budista
ou hinduísta. Nesta semana (última semana de setembro de 2017) minha esposa
teve contato com um vídeo chamado "A carne é fraca", produção muito
sagaz e convincente que demonstra, sem romantismo, o quão terrível e
insustentável é o modelo de produção (melhor seria ter dito "modelo de
destruição") que todos nós incentivamos apenas para atender nosso torpe e
impensado prazer sensorial. Se você é religioso entenda: VOCÊ sustenta o mais
terrível e cruel sistema de tortura jamais concebido. Não são meros maus tratos
(como se isso fosse aceitável). É tortura ininterrupta desde o nascimento até a
morte daquela inocente "criaturinha de Deus". Se você não é religioso,
melhor. Meu amigo, SEU desejo quase libidinoso por baby beef financia o mais
expansivo e catastrófico sistema de devastação e poluição da atualidade.
Esqueça o medo de vazamento nuclear, carros mal regulados, indústrias e afins.
A bomba H é acionada pela direção na qual você decide apontar o seu garfo.
Esqueça essa palhaçada de abraçar árvore centenária na vila Mariana, xingar
madeireiro na Amazônia, praguejar contra os baleeiros chineses. Você quer
realizar uma ação concreta pelo fim do desmatamento na região amazônica, salvar
os rios poluídos em Santa Catarina, reduzir o desemprego no centro-oeste e até
mesmo combater a fome na África? Boicote o açougue.
Mas este ainda não é o ponto.
Quero falar de comunhão. Não aquela realizada em cultos nos quais pessoas que
não se suportam fingem amar-se porque o padre está olhando (sei que na sua
comunidade não é assim. Fique tranquilo. Ouvi dizer que aconteceu uma vez em um
grupo lá para as bandas do Piauí). Uma comunhão concreta e profunda que
experimentei, embora silenciosa e não agendada. Como eu disse minha esposa viu
o vídeo e abraçou a causa. As mulheres! Estas heroínas tantas vezes anônimas
não raro são a força propulsora de grandes revoluções. Estou abraçando por ela
e com ela, mas também por mim, em eco às minhas aspirações espirituais e
inclinações intelectuais. Ainda há muita carne no freezer e muito leite longa
vida no armário. Estamos migrando.
Eu levo marmita para o
trabalho. Hoje comi frango, mas na última terça feira não levei marmita. Não
houve tempo de preparar algo. Quando não levo marmita almoço em um dos não
poucos restaurantes por quilo nas adjacências do meu trabalho. Lembrei-me,
então, que meses atrás um amigo da época da faculdade publicou no facebook uma
notícia sobre um restaurante de comida vegana na Consolação. Caminhei até o
local. Almoço a vontade por R$ 10,00 às segundas e R$ 15,00 de terça a sexta.
Por mais R$ 4,00 você tem chá mate à vontade. Comi. Gostei. Não morreria se
vivesse disto. Não morrerei. Mas não quero falar de encanto pela comida, suas
particularidades, sabores. Quero falar de comunhão. Quero falar o evento que
foi ter estado lá. Somos vermes. Nos portamos como vermes. Passamos horas de
nossos dias anestesiados, quase sonâmbulos, derramando irrefletidamente todo
tido de alimento goela abaixo, extasiados pelos sabores, enlouquecidos por
mais. Café da manhã, almoço, janta, sobremesas, docinhos no decorrer do
expediente, tudo no piloto automático, tudo sem estar lá. Você não vive aquele
momento, você apenas o engole. A refeição não significa nada. É tão vazia
quanto um ato sexual com um estranho. Pode te satisfazer na hora mas o vazio, a
fome, o desejo, retornam em seguida e o indivíduo parte em busca do próximo
estranho, da próxima refeição. Não terça feira. Não no restaurante de comida
vegana na Consolação. Estive em um culto, embora as pessoas ali não fossem
fanáticas de forma alguma. Havia ali pessoas de todos os tipos: bicho-grilos,
roqueiros, gente com cara te artista plástico, pessoas normais ("pessoa
normal": pessoa sem característica específica que possibilite incluí-la em
algum grupo interessante. risos) e executivos (grupo propositalmente separado
dos grupos interessantes e das pessoas normais. risos 2). Havia apenas três
mandamentos, escritos em "folders" distribuídos sobre as mesas:
"Nossos melhores clientes a)compartilham a mesa b)retiram os pratos c)não
desperdiçam comida.". Fui colocado à mesa com dois estranhos. Não sou
simpático. Não me apresentei e não conversei com eles. Não importa. Fui grato
por me aceitarem ali. Eles apenas não rejeitaram minha chegada, comportamento
que provavelmente seria similar em qualquer outro restaurante, mas com o ar
daquele ambiente foi mais significativo, afinal, eu não teria vivido aquela
refeição em outro lugar, apenas engolido.
Estar naquele restaurante foi
um ato racional e consciente de escolha do que comer e porquê comer. Disto
derivou o mágico acontecimento de tornar consciente o próprio ato de comer,
antes quase ignorado, literalmente atropelado. Escolhi aquele lugar e aquela
comida em detrimento doutros por razões bem específicas e então fui tomado pela
consciência de que todos os meus adjacentes haviam realizado a mesma operação.
Comunhão. Pessoas com os históricos e visões de mundo mais distintos reunidos
por pelo menos um valor em comum, uma ideia, comprometidos em, naquele ato
simples de comer conscientemente, poupar o animal da tortura, salvar a árvore
do corte, reduzir no solo, no ar e nos rios as mais várias formas de poluição e
possibilitar aos cidadãos do mundo alimentação digna. Comunhão. Foi um momento
profundo, digno, místico, com pessoas comprometidas com algo maior, pelo bem de
outros, de estranhos, sem o mais ínfimo desejo de retribuição a não ser o
prazer intrínseco ao ato e ao seu significado. Comunhão. Eu compartilhei a mesa
e os desejos. Retirei os pratos e os apegos. Não desperdicei comida e
certamente não perdi meu tempo. Comunguemos.
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