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domingo, 16 de abril de 2023

#Verborragia: Meias - 3

A palavra "Meias", originalmente escolhida para ser um conto, tornou-se causa de um conflito: quando foi sorteada a primeira reação dos meus dedos (o texto sai como decide sair; não faço planos) foi despejar meia dúzia de rimas aleatórias sobre o papel (na verdade, no celular); de alguma forma me indispus com aquelas rimas, como se fossem artificiais, então abandonei o texto e me forcei em uma prosa; ocorre que a deliberação pela prosa foi em si uma adulteração da naturalidade que pretendo para os textos, donde o retorno e a publicação do texto em verso ¹.

Em contrapartida, quando fui sortear a palavra para o conto seguinte me vi impedido de fazê-lo, incomodado pela lembrança do meio texto deixado para trás. Retomei-o, gerando um texto em prosa ².

Finalmente, superados os contos, chegou o dia de sortear a palavra para uma reflexão, mas eu ainda estava preso às meias; Mais especificamente, àquela experiência de #Conflito.

Se/quando reunidas duas metades (duas meias) se obtém, mais ou menos, um inteiro, o presente texto é em si uma desarmonia, uma fonte de conflito, ao introduzir a terceira metade.

A existência é inteiramente (sem [ou com] jogos de palavras com as "meias") construída sobre conflitos, desde um primeiro conflito estrutural que fez explodir a matéria antes reunida em um ponto, passando pelo conflito dos elementos simples, destinados a ser estáticos, "indevidamente" se reunindo em elementos orgânicos, até os conflitos internacionais por território e recursos. A primeira unidade biológica que se moveu o fez em função do conflito entre a economia energética do repouso (ou a segurança do ponto em que se encontrava) e a necessidade de obter mais energia (alimentos, luz solar, etc.).

Romances se iniciam a partir do conflito entre a praticidade da solidão e a insustentável saudade do outro; terminam pelo conflito entre as meias e as verdades; o luar é visível pelo conflito entre os materiais na lua e a luz solar, donde a reflexão, do contrário a luz seria absorvida e a lua seria invisível. A estabilidade de um átomo repousa no conflito de partes que se atraem e partes que se repelem; mesmo as nuvens só são possíveis em função de conflitos de atração e repulsão nas moléculas da água.

Como de costume (mas não exclusivamente), passemos ao próximo nível nesta escala que foi do quase nada ao algo e do algo à vida: passemos da vida à consciência.

Se a existência foi progressivamente se complicando, também se complicaram as formas de conflito, donde deriva que a consciência humana é (potencialmente), o império dos maiores conflitos.

Vivemos um oceano de conflitos internos, desde a decisão de ficar deitado ou ir tomar uma água até as insuperáveis dúvidas existências dos filósofos, sejam os acadêmicos, sejam os anônimos. Os conflitos subjetivos se potencializam quando versam sobre as relações objetivas, ou melhor, nos pontos de contato de subjetividades distintas. A comunicação (e note que ainda não introduzimos intencionalidades maliciosas e/ou mentiras) é uma ferramenta intrinsecamente conflituosa, pois envolve incontáveis processos de tradução nos quais, invariavelmente, dados/intenções são perdidos e desencontros/desentendimentos são promovidos. Veja: a subjetividade, uma qualquer, é em si um universo quase infinito e extremamente complexo de conceitos, ideias, intenções e sentimentos; Este universo não é, em absoluto, comunicável; opera-se uma tentativa mais ou menos (nunca completamente) eficiente de traduzir esta existência profunda, complexa e, por isso mesmo, inefável, em elementos parcialmente coerentes no idioma comum (aqui português, ali espanhol, acolá inglês, e por aí vai). Uma infinidade de nuances, significações e sentimentos já foi perdida; essa mensagem, incompleta e falha por natureza, é captada pelos órgãos dos sentidos do interlocutor; esse simples pulo, de um corpo ao outro, dos lábios aos ouvidos, quando falado, dos dedos aos olhos, quando escrito ou gesticulado, é por si só falho e incompleto, passível de perda e distorção adicionais por toda sorte de fatores; finalmente, a coisa (ainda é uma mensagem?) capturada pelo receptor precisa passar por nova tradução, indo da linguagem comum ao profundo e complexo idioma interno do outro. As duas traduções anteriores fornecem uma "frase" fragmentada, repleta de lacunas, as quais o receptor procura preencher com as referências do seu universo subjetivo pessoal, portanto, invariavelmente distintas dos elementos originais presentes na frase do emissor e perdidos no processo. Nota o quanto se perde aí? A margem que se cria, invariavelmente, para toda sorte de engano e erro? E tudo isso só no primeiro contato! A sucessão de eventos acima ocorreu no momento de um  "Olá!". Se/quando o diálogo segue as ocasiões de perda de dados e de distorção de significado se multiplicam exponencialmente.

Comunicação é conflito: Incubadora de meias verdades, mesmo se/quando ninguém pretende mentir.

Introduzidas as más intenções, o egoísmo, a vaidade, a vontade ativa de enganar ou iludir, de extrair indevidamente do outro benefícios para si, a exponenciação se multiplica: Conflito à enésima potência (sou de humanas. Não me crucifique pelas incoerências matemáticas).

Note que, embora estejamos tratando das interações entre entidades subjetivas, a comunicação ocorre em terreno objetivo. Subtraída momentaneamente a alteridade, logo, a oportunidade da comunicação, resta-nos ainda a infinidade de conflitos internos que um único indivíduo pode construir e aprimorar; melhor dizendo, cultivar e nutrir.

 Ainda que o empirismo sugira que a existência subjetiva seja uma existência individual o fato é que nenhum ente humano isolado é um indivíduo ³. Somos compostos por conjuntos de desejos, valores e ideias que se reúnem em organismos (ou facções) que disputam entre si (mais conflito) a hegemonia para o controle da entidade que chamamos de "Eu". Esse processo profundo e complexo ocorre em níveis não observáveis e para isso aplicamos o nome de "inconsciente" e os fragmentos disto que vazam ou transbordam para a parte "observável" de nosso existência interior nós chamamos de "consciência". A parte consciente de nosso ser opera em idioma comum (no nosso caso, o português) e sua (nossa) compreensão do mundo objetivo é organizada em conceitos extraídos deste ou construídos neste idioma. O rei (a consciência) sitiado(a) em sua fortaleza escuta o ruidoso protesto da nação sanguinolenta urrando em frente aos portões, mas não consegue distinguir o que exigem; Por não ouvir, não age; por não agir, será enforcado.

Eventualmente escuta um grito que se destaca da tempestade de vozes, um "temos fome" aqui, um "não suportamos os impostos" ali. Há reis que caçoam e ignoram, demasiadamente confiantes em suas muralhas; estes tem a vida encurtada; Eventualmente há o rei que joga pães do alto do muro ou interrompe a taxação por uma quinzena. A multidão não se dispersa mas, distraída, adia a derrubada dos portões.

Os gritos eventualmente compreensíveis denominamos "sonhos" aqui, "intuições" ali. Aos que lhes dão ouvidos denominamos sábios, sensatos, sortudos ou alquimistas; sobre os arrogantes a lhes ignorar dizemos "pobre infeliz. Sempre falha. Nasceu sem sorte .". Ora bolas; outro conflito.

Este texto não é sobre misticismo; não vou dar significado mágico a esses ruídos sem idioma que tentam apontar caminhos para nossa consciência ignorante; também não é, de modo algum, a tentativa de minar interpretações metafísicas ao cenário; por isso mesmo este texto está destinado a ser uma meia verdade, enraíza na infinidade de conflitos de nossa existência. Seja simples comunicação falha de nosso inconsciente com nosso consciência, tentando desesperadamente nos enviar mensagens e sugestões em idiomas que nossa mente não consegue abarcar, seja de fato uma manifestação transcendental nos orientando, o fato é que na infinidade de conflitos que regem nossa existência objetiva e subjetiva reside, de algum modo, a semente de um fruto com poder de iniciar o fim dos conflitos. Pretensioso, eu sei; por isso usei "iniciar".

Os conflitos são tantos (ainda mais ao falarmos do universo subjetivo) que eu mesmo me perdi no tema, iniciando por falar de conflitos objetivos, depois subjetivos e saltando, inadvertidamente, para as intuições. Provavelmente algum(ns) golpe(s) de Estado em meu espírito bem no meio da composição do texto.

Pensei em rever as três etapas (conflito objetivo, conflito subjetivo e intuições) com alguma interpretação dialética, mas na verdade a progressão que elas operam não gera conflito em suas etapas: não podem ser lidas como tese, antítese e síntese. Considerando isso o incomodo que senti, como se cada qual estivesse incompleta, encerra-se no entendimento de que a proposta seguinte (na cronologia do texto) é, potencialmente, antecessora e causa da anterior (em cronologia existencial). Vejamos:

Sendo as etapas acima classificadas como A, B e C, temos que o indivíduo humano, qualquer um e todos, nasce em C. Antes mesmo da aquisição de idioma e da capacidade de comunicação consciente com terceiros, as marés de desejos se formam e os primeiros conflitos se instalam, dados os sentimentos, desejos e instintos se organizando nas primeiras facções, praticamente tribais. A criança pede o brinquedo e o descarta, chora de fome e cospe a comida, pede um colo só para pedir o próximo. Nesse estado inicial, ausente o idioma, ausente a consciência pensando em língua comum, a tradução não é necessária e a existência é, parece-me, preponderantemente intuitiva. A criança surfa em suas intuições e chora quando "toma um caldo".

Iniciada a aquisição do idioma começa a construção da individualidade subjetiva, o que se demonstra pela repetição de "eu", "meu", "dá" e equivalentes. Embora B e A se construam quase simultaneamente, há uma anterioridade -ao menos ideal - de B, pois algumas traduções internas rudimentares precisam se operar, com algumas idas e vindas dialéticas, até que expressões sejam emitidas externamente. É nessa anterioridade ideal/conceitual de B que reside o início da construção dos conflitos, ora entre o que quero mas ainda não encontro repertório vocabular para evocar, o que quero mas já compreendi que não é de obtenção imediata, o que quero e já foi decretado que não posso.

Conforme vou criando vocabulário para externar meus sentimentos e desejos, também começo a externar meus conflitos, sempre voltando ao choro quando a linguagem comum não os resolveu para mim.

Despejados os conflitos no mundo objetivo, torno-me A e mergulho no caleidoscópio de traduções infindáveis.

A progressão de C a A não é um passo a passo no qual o elemento anterior é superado e abandonado, ocorrendo a incorporação de cada novo elemento de modo que tornamo-nos um emaranhado confuso, rotativo talvez, de C>B>A>C>B>A>C>B>A e assim por diante. Somos os três ao mesmo tempo; chafurdamos nos conflitos de cada nível, incapazes de conceber uma existência não conflituosa. Somos, de fato, três metades.

Dado que C+B+A é o que nos forma e dadas as três leituras aqui realizadas (a progressão de A a C, a progressão de C a A e, finalmente, a simultaneidade CBA), sou obrigado a inferir que C possui, ao menos idealmente, o menor índice de tradução, por tanto, a menor margem para perdas e erros; é claro que na primeira infância isso é mais verdadeiro que na idade avançada, quando nos tornamos reféns do idioma e ariscos à qualquer manifestação do inconsciente; ainda assim, ele está lá, usando toda sorte de subterfúgios não idiomáticos para nos admoestar (sobre o que quer que seja) enquanto lutamos para encaixar tudo no nosso referencial vocabular. Na infância fluímos mais, ouvimos (melhor, sentimos) mais e catalogamos menos. Falando em termos de intuição, é possível residir aí a diferença entre um cético inveterado (como eu) e um místico; este conseguiu manter (ou recuperar) a fluidez não idiomática da primeira infância e baila com os sentimentos e inclinações (eventualmente, orientações) não linguísticos que recebe de seu inconsciente; aquele se tranca no alto da torre construída com blocos conceituais e rejeita outras formas de expressão e entendimento como se fossem tribos bárbaras lhe atacando; meias verdades.

Como entusiasta da metodologia científica sou obrigado a me render à necessidade de conceitos, categorias, classificações, tudo sempre no bom e velho idioma comum; por outro lado, é indiscutível o imenso volume de conhecimento produzido por pura intuição e só depois categorizado, portanto, é inaceitável o desprezo a este reino. As análises da subjetividade, a psicologia, a psicanálise, são tanto mais ricas e eficazes quanto se aventuram, progressivamente, em aceitar e dialogar com esse reino não idiomático tão vasto e profundo; essa multidão de vozes sem palavra; esse som do silêncio (Hello darkness, my old friend...).

Falei, falei, e nada entreguei. Texto chamado "Meias" quê é terço, não metade; reflexão sobre conflitos que não os resolve; convite à (abertura à) intuição de um tal que nada intui.

Considerando a compulsão, evidenciada na construção deste texto, de forçar interpretação dialética onde ela não está (uma coisa não se torna automaticamente dialética simplesmente por existirem três termos) , vou "dialetizar" o último parágrafo:

Tese: a existência subjetiva é uma paradoxo insuperável de meias verdades e elementos não perfeitamente cambiáveis (metades, terços e incoerências gerais);

Antítese: não são, necessariamente, insuperáveis, mas sim conflituosos, passíveis de solução, ainda que o presente "tentante" não o tenha realizado ("reflexão que não os resolve...")

Síntese: é justamente pelo processo exclusivamente conceitual, não intuitivo, do presente "tentante" que o processo não se soluciona.

O texto inteiro existe para mostrar a dualidade "Objetividade X Subjetividade" -aparentes metades ("meias") perfeitas da existência- e segue para a "terceira metade", um outro nível existencial cuja função (entre diversas outras possíveis não exploradas aqui) é preencher lacunas no nosso entendimento geral de nós e do mundo para enriquecer nosso caminhar nesta existência.

É isso! Creio que na abertura à ideia de que nosso inconsciente tenha algo a nos dizer resida nossa capacidade (potencial) de começar a solucionar nossos conflitos, primeiro os internos, depois os externos. Tenho a a intição que este seja o meio.

Notas:

1 .  Leia Meias - 1 

2 . Leia Meias - 2 

3. Leia Paradoxo do Amigo Imaginário 

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