Então eu li "Que tal "Imersão"? Acho que combina com o seu estilo de escrita — essa capacidade de mergulhar fundo em ideias, sentimentos e experiências. Além disso, dá margem para reflexões sobre entrega, envolvimento, presença e até mesmo a dificuldade de se desconectar. O que acha?". Como eu poderia recusar?
Ainda que o caminho óbvio dessa análise seja explorar o mergulho, achei interessante descobrir que um outro significado presente no verbete pode ser "Instante em que um planeta entra na sombra de outro; começo de um eclipse"¹, assim, adiarei o salto para olhar um pouco para o céu.
Parece-me relevante pensar em eclipse justamente por consistir em um corpo celeste adentrando a sombra do outro, pois é justamente aí, na interação com a sombra, não com a superfície, que consiste um dos mais relevantes e negligenciados aspectos das interações humanas. Caso você ainda não saiba, digo-lhe agora: Todos temos sombras. Curiosamente, não as reconhecemos, as negamos ou rejeitamos, quando se trata de nós mesmos, e as condenamos e repelimos, quando no outro. Não é por mal, mas sim por comodidade: É mais fácil rejeitar as sombras que enfrentá-las (até o enfrentamento é um equívoco, mas, por ora, vou aceitar essa via como a possibilidade oposta à fuga; há opções melhores).
Esse comportamento deriva, em parte, de nossa inaptidão para reconhecer e lidar com as sombras (sejam nossas, sejam da alteridade), e, por outro lado, do discurso contemporâneo de que as sombras são manchas a serem superadas (tal qual o conceito de "Ego"). Como o ponto aqui são as relações interpessoais, não vou me aprofundar em seu relacionamento com suas próprias sombras (suspeito que já tenhamos discutido isso antes); necessitamos compreender que cada um de nós tem uma forma, um relevo, um tipo peculiar de atmosfera e habitantes, camadas internas e núcleo (como corpos celestes?) e que é virtualmente impossível dois entes iguais. Ora, se a sombra tem a forma do corpo (aqui leiamos "corpo" como o ente, o ser, não como a superfície), se entro em contato com ela tenho a oportunidade efetiva de conhecer o outro, naquilo que ele é, não naquilo que ele quer construir para mim; a sombra é o ente como ele é, pois não é acompanhada da forma da atmosfera (ainda que a atmosfera possa, por refração, distorcer parcialmente o caminho da luz, logo o formato da sombra; a própria gravidade pode fazê-lo). Se nos habituássemos a compreensão de que a sombra é um caminho para o outro, não um lugar escuro a ser evitado, ansiaríamos pelos eclipses como fazem os cientistas e os poetas, no lugar de nos aterrorizarmos como os povos primitivos.
Caso assumamos a postura de compreender que a sombra é parte imprescindível do outro (também de nós), poderemos assumir uma postura de apoio, compreensão, acolhimento, que pode ajudar o outro a compreender, aceitar e assumir suas sombras, assim como ele pode ser apoio em nossa relação com nossas sombras.
Em um eclipse total sou eu mesmo colocado no escuro, totalmente envolto pela sombra do outro; isso pode ser assustar, quando se tem medo do escuro. A grande surpresa é: A noite, o escuro, é (são) o estado natural do Universo, sendo o dia uma ilusão momentânea decorrente do acidente de estarmos ao lado de uma estrela. Não há o que temer naquele lugar, mas sim a oportunidade de descoberta, de beleza, de entendimento e, então, de paz. É somente à noite que podemos olhar para cima e ver o céu como ele realmente é.
Passado o eclipse, reestabelecido o dia, encontramo-nos diante do oceano. Com os pés cravados na areia temos a escolha de recuar ou avançar: Mergulhemos.
O mergulho, sobretudo em ambiente não controlado (por "controlado" leia piscina, preferencialmente rasa), deriva de profundas entrega e confiança, salpicadas de coragem. Não há experiência que garanta o sucesso; Você imerge com a esperança de emergir, não com a certeza.
(Pausa rápida para dizer que acabo de descobrir existe a palavra "Imergência" e estou fascinado).
Imergimos no mar e em pessoas, sem certeza do que encontraremos, apenas uma expectativa de que valha a pena. Outra moda da atualidade é a defesa de que não se deve criar expectativas; isso não é possível; criar expectativa é algo inerente à nossa espécie, um subproduto de nossa capacidade de antever eventos; qualquer tentativa de não criar expectativa está fadada ao fracasso. A energia consumida tentando não criar expectativa seria melhor aproveitada no esforço de compreender que a expectativa é minha, não do outro, e ele não é obrigado a se enquadrar no que projetei. Perdoada a criação de expectativa, me entrego. Mergulho em um oceano de incertezas movido exclusivamente pelo sentimento de entrega. Além do mais, desde que o eventual leitor desse texto não seja um manipulador barato, não apenas nos entregamos à experiência, também procuramos entregar o melhor de nós ao interlocutor. Dupla entrega, no sentido de desprender-se e de entregar algo. Falei do manipulador para tentar nos precaver, para que nossa entrega seja honesta, legítima, não um simulacro, tentando agradar o outro entregando o que não somos, prometendo o que não temos. Entreguemos transparência.
Uma vez imersos, afundando cada vez mais, vem o envolvimento; instantes ou minutos depois da imersão, instantes ou minutos antes da asfixia, há um momento no qual toda a dúvida e todo o juízo são suspensos e nos envolvemos completamente com o que está adjacente. No envolvimento nos tornamos íntimos da água e de tudo o que ela contêm, como se fossemos, a um só tempo, água, cardume, baleia, bolhas em espiral, Fibonacci em pessoa e o rapaz que operou o drone que capturou essa imagem do alto. O termo "envolvimento" é profundo, porque na raiz tem um quê de totalidade; é completo, complexo e profundo; É inteiro, abrangente e (potencialmente) invasivo. Justamente porque há a entrega mencionada antes, do que se é, não do que se quer retratar, que você se desnuda e se converte em um ente totalmente envolvido pelo outro; quando você mergulha, não há parte sua que não se molhe.
Da entrega e do envolvimento, se/quando legítimos, deriva a mais profunda presença; somos acustumados a ser ausentes; nossa existência nesse mundo se resume a ter o corpo em um local e tempo no qual não está a nossa mente; você acorda e não está na sua cama, está em uma saudade de um rosto que lhe ocorreu logo que abriu os olhos ou na preocupação de uma tarefa incompleta de ontem que terá que resolver hoje; você vai para o banho mas não está naquela água, mal a percebe tocando sua pele, pois sua mente está em uma conta que você esqueceu de pagar e/ou na culpa de não ter acordado tão cedo quanto gostaria; toma seu café com a mente no almoço; desloca-se ao trabalho ou aula com a mente na sexta; é assim o dia inteiro, todos os dias; em cada ponto do espaço e do tempo em que seu corpo está, sua mente está em outro. Ausência nos define; MAAAAAAS, há momentos, raros, de entrega e envolvimento (não necessariamente românticos; não necessariamente com pessoas; pode ser um por do sol) tão profundos que o passado e o futuro desaparecem; esquecemos de rostos, tarefas, contas, sono, refeições, bares etc. Você está ali; sua mente coincide com o seu corpo, ela vê o que ele vê, sente o que ele sente. Sua atenção imerge no presente e, por um breve período, você está desperto.
O grande paradoxo de uma experiência de envolvimento é que a mente adere a ela, ainda que a existência real não possa fazê-lo. Certa feita fiquei preso a um abraço; não era destes abraços cotidianos que se dá ao felicitar alguém em um aniversário, nem aqueles abraços que amigos homens dão um no outro, que abraçam com um dos braços enquanto afastam com o outro. Foi um abraço de "estou aqui!", "estou com você!"; desejei morar ali. Ora. Não se pode abraçar para sempre; é preciso soltar o outro pois é preciso seguir a vida; O paradoxo consiste em: Aquele momento de envolvimento profundo (Imergência! Já te disse que adorei essa palavra? ) que desconectou minha mente do passado e do futuro, que me ajudou a ser/estar presente por um momento, ao se tornar passado fixou minha mente no passado, comprometendo outras oportunidades de presença. É como se, ao nos permitirmos imergir, fossemos apanhados por uma corrente de água muito forte que 1) nos remove da experiência mais profunda de imersão e 2) em vez de nos levar mais para o fundo, empurra para cima, emersão.
A internet me ensinou que quando uma corrente de retorno nos puxa mar adentro não devemos lugar contra ela, tentando voltar à praia (muito menos ao ponto original de imersão), mas si paralelamente à praia, até que saiamos daquele fluxo e encontremos uma área no qual o movimento da água não impeça o retorno (á segurança, não ao ponto original de imersão). A dificuldade de desconectarmo-nos de eventuais envolvimentos te semelhança com nos debatermos contra os correntes do mar; debatemo-nos contra o inexorável fluxo do tempo e da impermanência. Convém, portanto, aprender não apenas a nadar, mas a direção certa para a qual nadamos. Só assim poderemos encontrar novos pontos de imersão, entrega, envolvimento e presença.
Notas:
1. Michaelis
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