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Há anos ocorrem ricos diálogos sobre Civilização Humana e Filosofia, Teologia, História e Cultura em geral! Tudo que possa interessar a alguém que espera da vida um pouco mais que outra temporada de BBB! Após diversos convites a tornar públicos estes diálogos, está feito! Quem busca uma boa fonte de leitura, por favor, NÃO VISITE este site. O que esperamos, de fato, é a franca participação de todos, pois não se chama “Outros Discursos”.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

#Verborragia: Estranho

"Seja você, mesmo que seja #Estranho..." foi a segunda coisa que me veio à mente quando a palavra de hoje foi escolhida (na voz da Pitty, naturalmente); a primeira coisa foi " 'Estranho' é uma boa palavra; não gosto de 'bizarro'".

"Bizarro" é um termo que não lembro ter ouvido na infância e adolescência, mas observo utilizando compulsivamente na atualidade; suponho que tenha sido introduzido pelos processos de dublagem de filmes e séries e se tenha popularizado por meio das mídias sociais. A palavra é muito feia e isso bastaria para eu não usar; não tem valor estético nem propósito; não tem serventia no que escrevo nem me causaria deleite no que leio; seu uso exagerado e indiscriminado é a assinatura de um comportamento sem nome, mas igualmente crônico, da sociedade atual: qualquer coisa minimamente estranha é imediatamente apartada do aceitável com o selo de "isto é bizarro". A coisa alcançou tamanho nível de desmedida que até em matérias sérias de veículos consolidados o termo (e a metodologia torpe de avaliação que o acompanha) é (são) aplicado (s). Certa feita vi em um tradicional site de astronomia a fotografia de uma nebulosa; a imagem (e a manchete) merecia(m) termos como "espetacular", "linda", "belíssima", "exuberante", quando muito "peculiar" (que bela palavra é "peculiar"), mas como a formação apresentava características morfológicas incomuns, logo veio "NASA libera imagens de nebulosa bizarra"; Desesperador.

"Não fale com estranhos", dizem nossos tutores quando estamos começando a conhecer o mundo e ainda não somos capazes de nos defender e nem de reconhecer certos tipos de perigo; o "estranho" apontado pelos mais velhos não é, em absoluto, uma figura passível de receber a alcunha de "bizarra"; se o fosse a criança não precisaria ser alertada; o medo trataria de garantir seu afastamento instintivo; os "estranhos", ali, são gentes bem apessoadas, bem vestidas, geralmente de comportamento educado, gentis e atenciosas; são "estranhas" exclusivamente pelo fato de não serem conhecidas. Ora, tudo que não é conhecido pode vir a sê-lo, bastando realizar-se o esforço adequado para tal; subtraídos os cenários de perigo da infância (e muita gente cresce sem aprender a reconhecê-los e/ou evitá-los), deveríamos ser estimulados -como prerrogativa social e existencial (não meramente científica)- a eliminar tudo que nos é estranho, não pelo afastamento, segregação ou eliminação da coisa estranha, mas pela eliminação da estranheza em si, tornando a coisa conhecida.

Certa vez um bicho muito estranho, algo entre o feio e o assustador, mas absolutamente nunca bizarro, apareceu em minhas plantas; Contive o impulso natural (leia-se "tosco", "primitivo" "ignorante", "imbecil", etc.) de removê-lo (leia-se "matá-lo") e assumi uma postura respeitosa; poucas coisas na natureza vão te ferir ativamente; geralmente reagem a um ato seu interpretado como agressão. Notei que meu pé de maracujá, sempre em sofrimento pelos sucessivos ataques de lagartas, apresentou-se livre de seus agressores. Pesquisando a respeito do meu amigo "assustador" (e essa pesquisa foi o ato voluntário de remover a estranheza) descobri tratar-se de um "besouro assassino", denominação leviana e injusta; é um inseto que caça outros insetos, sendo assassino para eles; é inofensivo para humanos (o que não significa que você é livre para abraçá-lo, "Felícia"; ele vai se defender e a picada é dolorosa). Meu pé de maracujá nunca esteve tão saudável, a população de lagartas está controlada de forma natural, as borboletas não vão entrar em extinção e os besouros "assassinos" nunca entraram na minha casa.

Hoje resido na casa em que cresci; andando por minha rua recentemente avistei um rapaz, hoje homem, afinal temos a mesma idade, e tive meu coração arrebentado em um mar de estilhaços quando fui alvejado pelas lembranças de todo mal que pratiquei contra ele. Quando crianças, na escola, ele era um menino "estranho" e não havia as "vacinas" contra o bullying que se multiplicam atualmente; devia ser um bom garoto; eu nunca tentei descobrir; provavelmente um filho amoroso cujo coração da mãe se partia por ouvi-lo dizer que a escola era um lugar de crianças cruéis (e crianças não são anjinhos amáveis e cuidadosos); hoje deve ser um homem trabalhador (nos cruzamos em horário de fim de expediente) e ele respondeu ao meu cumprimento educadamente; pedi aos deuses que ele tivesse respondido por simples cortesia, mas que não tivesse me reconhecido; não era questão de eu ficar encabulado caso ele lembrasse de mim; eu só desejei que ele não recordasse a dor que eu poderia representar. "Não fale com estranhos" valia apenas para adultos desconhecidos; com crianças incomuns falávamos bastante e sempre com crueldade. Para mim o importante era evidenciar a estranheza dele tanto quanto possível para ofuscar minhas próprias "não conformidades" e assim garantir minha aceitação pela maioria, minha "capela" ¹. Estupidez cultivada e incentivada pelas crianças entre si e provavelmente por alguns pais, com o "silêncio obsequioso" dos professores.

Meu filho, graças aos deuses, é superior ao pai, não herdou sua estupidez juvenil e, não raro, apara suas (no caso, minhas) arestas até hoje. Serei melhor com o tempo. Meu filho me dá esperança nas próximas gerações, mas não reduz a importância e urgência de revisarmos constante e diligentemente nossas posturas.

Lembro, ainda, de uma "menina nova", transferida com o ano letivo em andamento. Não era "estranha" em suas características gerais, mas era -involuntariamente- externa à turma, estranha em nossa história e simplesmente por isso foi hostilizada por um mês.

Uma última lembrança, que me ocorre apenas agora (02:54 da madrugada de uma quarta-feira) é a de uma moça, demasiadamente alta, com traços masculinos e sempre de vestido (no país demasiadamente católico era comum hostilizar os "crentes"), que começou a sentar perto de mim na oitava série; eu não me tornei exatamente amigo dela (em minhas lembranças ela não tinha nenhum), mas acho que já começava a notar a estupidez dos comportamentos tribais * e me permiti trocar algumas palavras com ela; a moça, provavelmente muito sensível e observadora (deveria ter se tornado uma ótima amiga, se recebesse a chance) notou meu apreço especial pelas aulas de Filosofia e sugeriu, QUATRO ANOS antes de eu começar minha graduação, que eu procurasse estudar exatamente onde me formei; hoje não tenho como agradecê-la nem comunicar que ela é (uma das) causa(s) da parte mais significativa do que eu sou hoje.

Somos todos estranhos; imagine o quanto teríamos crescido mais e mais rápido se tivéssemos dado oportunidade e voz a todos e a tudo que rejeitamos pelo simples (e ilusório) fato de nos parecer estranho. (O texto terminava aqui)

"Estranho seria se eu não gostasse tanto de você...", disse Nando Reis; Estranho seria eu não vir aqui completar o texto, uma vez solicitado por pessoa tão (nada estranhamente) cara.

Para além dos estranhos de nossa infância e dos absurdos preconceitos que nos engendraram, há ainda os estranhos instantâneos da vida adulta, aquelas pessoas sem motivo específico para entrar em nossas vidas e mesmo assim entram, seja por três minutos, seja por trinta anos. Por "motivo específico" entenda como aqueles estranhos (afinal, todos são estranhos) que entram na sua vida pelas circunstâncias naturais da sua história individual: colegas de sala, de trabalho, novos vizinhos ², etc. Há circunstâncias da existência nas quais é normal ser levado ao contato com novas pessoas; fora disso, há as pessoas que se apresentam por acidente, um esbarrar no metrô, um encontro em uma festa que você nem pretendia ir, um assunto de interesse comum em uma mídia social, uma corrida de uber, etc. Todos os estranhos, incluindo estes estranhos instantâneos, são fontes potenciais de conhecimento sobre o mundo e/ou sobre você mesmo, desde que você esteja disposto a transcender as barreiras iniciais e ouvir com atenção; há riqueza em todos os encontros, seja com uma pessoa que partirá para nunca mais ser vista, seja alguém que, do nada, se converterá em uma amizade profunda e duradoura.

Vivemos em um mundo complicado feito de relações líquidas e pessoas egoístas; aquele que convencionou-se chamar "tóxico" é um indivíduo que, nem sempre de forma consciente, manipula os eventos e interações a fim de extrair dali o que ele deseja e/ou o deixa confortável. Foi treinado por anos e anos de interações chegando a um modelo de operação que é (ou pode ser) muito danoso para o outro, mas a maioria das pessoas o faz por condicionamento; não é uma operação consciente ou voluntária; apenas "funciona", portanto, é reproduzida.

Sobre este tipo "peculiar" de estranho a primeira coisa que precisamos aprender é que não é tão peculiar assim; assim como todo mundo é estranho, todo mundo é "tóxico" e manipulador em algum nível; todo mundo tem estratégias de sobrevivência que, em algum momento, poderão ferir ou magoar alguém.

Dadas estas premissas a segunda coisa a aprender é que cada um de nós assuma a consciência e responsabilidade de sua própria toxicidade, assumindo a postura ativa e constante de buscar/construir novos padrões de comportamento, baseados na relação simbiótica, não extrativista.

A terceira coisa a aprender, ou melhor, reforçar, é que raramente estas atitudes são mantidas conscientemente, portanto, a sumária repelência às personalidades aparentemente tóxicas que se tem apregoado (o conselho de repelir os tóxicos se espalha na onda do termo; você é ensinado a repelir os tóxicos no mesmo momento que aprende que eles existem) não é a melhor via para o aprimoramento das relações. Se/quando você é adulto e se depara com uma criança mimada você não a coloca para fora de casa, você a orienta (ou solicita esta ação aos pais) sobre posturas e formas melhores de se chegar a um entendimento. Nossa interação com uma pessoa tóxica deve espelhar a mesma tendência, ou seja, sendo você a pessoa mais madura da história acolher e orientar o outro, não expulsá-lo; ao lidar com a criança você sabe (ou deveria saber) como não ceder às artimanhas sem ser necessariamente agressivo ou evasivo; com o "tóxico" deveríamos ser capazes de criar mecanismos análogos, tornando possível manter a relação com aquele indivíduo sem nos permitir atingir pelas suas ações. Não é fácil, eu sei, mas o processo de produção de mais e mais indivíduos "tóxicos", uma verdadeira reação em cadeia, não vai ser voluntariamente interrompido por eles; precisa ser ajustado pelas pessoas que forem capazes de identificar a toxicidade (nos outros e em si) sem simplesmente rechaçar as pessoas (a criança mimada não deixa de sê-lo sendo colocada de lado; é preciso orientação ativa) , trabalhando ativamente pela criação de interações progressivamente mais saudáveis e mutuamente benéficas.

Por favor atente-se: Eu estou falando de ajustes em interações com pessoas (notadamente ou aparentemente) Tóxicas e não de relacionamentos tóxicos; se/quando a relação é evidentemente danosa para você e a criação de métodos de ajuste na postura do outro não parecem estar ao seu alcance, não mantenha a relação apenas porque este texto fez parecer ser o correto; quando o avião está em apuros a orientação é "coloque primeiro a sua máscara; DEPOIS ajude os outros"; te salvar é mais importante que salvar o outro pois, do contrário, os dois serão perdidos. Se seu envolvimento com o tóxico lhe parecer mais claro a partir deste ponto e você se senti capaz de criar suas defesas sem abandoná-lo mas, sim, resgatando-o, faça. SE/QUANDO você se sentir impossibilitado de prestar apoio e, principalmente, minado em suas próprias energias, se retire. vai doer! Você se sente responsável por aquela pessoa; você se apegou (seja por um sentimento natural seu, seja ´pelas manipulações dela), mas o envolvimento tornou-se destrutivo para você; se retire!

Em todas as interpretações possíveis a fronteira entre o "simplesmente estranho" e o "verdadeiramente danoso" são tênues; aprenda a observar reconhecer:

se/quando o outro for estranho apenas com base nos teus preconceitos, transponha teus preconceitos e acolha; 

se for estranho em função de uma postura ativamente (não confundir com conscientemente) danosa a você, construa mecanismos de contensão e apoio e acolha e oriente;

se for evidentemente danoso e impossível de se defender, se retire.

Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!  )

Notas: 

1. Pretendia indicar a leitura do texto chamado "Capela", mas descobri que nunca o publiquei. Se você pesquisar especificamente "capela from:phdcelo" no twitter vai ver que eu aponto o conceito há, no mínimo, 11 anos, mas nunca o sistematizei em um texto.

2. Leia Vizinho 

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