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Há anos ocorrem ricos diálogos sobre Civilização Humana e Filosofia, Teologia, História e Cultura em geral! Tudo que possa interessar a alguém que espera da vida um pouco mais que outra temporada de BBB! Após diversos convites a tornar públicos estes diálogos, está feito! Quem busca uma boa fonte de leitura, por favor, NÃO VISITE este site. O que esperamos, de fato, é a franca participação de todos, pois não se chama “Outros Discursos”.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Você lembra?

Quando percebi que hoje é quarta pedi ao meu filho que escolhesse uma palavra para a #Verborragia¹ de hoje. Como ele me devolveu um conjunto de ideias (uma conversa que tivemos no passado), não uma palavra isolada, decidi que o texto de hoje é/será uma reflexão avulsa, fora da #Verborragia.

Não poucas vezes eu inferi que "somos o que lembramos"², assim, preciso registrar (orgulhoso), que meu filho chegou a conclusão semelhante, por meios próprios.

A conversa citada acima (a qual ele me pediu que desenvolvesse neste texto) foi uma ocasião na qual ele comentou que estamos o tempo todo vivendo momentos, esse instante curioso que chamamos de "presente", infinitos momentos, infinitos "presentes", mas se, no momento (ou dia, ou década) seguinte eu não me lembrar, é como se não o tivesse vivido.

Veja, postular que existem momentos concretos no meu passado, sem ser capaz de enumerá-los, não lhes confere maior grau de existência concreta que postular que cheguei levitando ao quarto no qual digito estas palavras. Postular, o que quer que seja, não é conferir existência concreta. Só existe o fato. Nossa relação com o fato, porém, é atravessada (por que não dizer "mutilada"?) pela arbitrariedade da nossa memória, ora retendo, ora abandonando, eventualmente até editando.

Se eu vivi uma sequência de situações "a>b>c" e minha mente, brincalhona, me diz que foram "a>c>e", caso não exista outra testemunha que me alerte e corrija, nada no universo fará com que os eventos tenham sido diferentes de "a>c>e". Só a memória pode validá-los, recuperá-los, trazê-los à existência sob a forma de narrativa mnemônica, logo, só podem existir como me lembro que ocorreram. Ainda que nosso esforço lógico exija que apenas "a>b>c" seja a única sequência de fatos real, nossa relação com o tempo, toda ela transcorrida na memória, não na pedra, força que a verdade resida em "a>c>e" e que "a>b>c" não passe de uma hipótese; um sonho esfumaçado; uma alegoria fantasmagórica impossível de colocar no mundo.

Se, por outro lado, um interlocutor, sabidamente presente no momento, me corrige, alegando que sua própria cadeia mnemônica garante que os eventos foram "a>b>c", temos aquela curiosa situação de duas verdades em conflito. Veja: Não temos um confronto entre verdade e mentira. Não há mentira aqui. Ambos acreditam no que dizem, conforme lhes atestam as respectivas memórias. Um dos dois precisará ser convencido, reforçando, por convenção, não por verificação empírica (salvo um evento gravado, o que não tem utilidade para esta discussão), uma das hipóteses, erigindo-a arbitrariamente a verdade, e descartando a outra. Também pode acontecer de ninguém ceder, e ambos seguirem cada qual com a certeza de que o outro está desorientado. (você é ou já foi casado? Você está neste ponto. risos).

Brincadeiras da mente à parte, o grande ponto a se explorar aqui não é o de memórias existentes, porém distorcidas, mas sim o das memórias perdidas. Se me esqueço que almocei macarrão na última terça, sendo que o fato de eu ter testemunhado e vivido aquela refeição era o único modo de garantir-lhe existência, nunca aconteceu. Novamente sua mente lógica evocará que, na sequência histórica de todos os fatos do universo, certamente terá acontecido, independente de qualquer memória de qualquer pessoa. Está correto. Do ponto de vista lógico (quiçá mecânico), o evento aconteceu. Mas se não há quem se lembre dele, qual a relevância da lógica?

Se nos fosse facultado catalogar (naturalmente, só podemos especular) todos os eventos que nos aconteceram concretamente, mas que tornaram-se totalmente ausentes de nossa memória consciente, esse catálogo inteiro seria guardado na estante de ficções de nossa biblioteca particular e seria tão relevante quanto um filme visto na sessão da tarde. Eu adoro filmes. Adoro o conhecimento que extraio deles e, certamente, teríamos muito para extrair do catálogo supracitado, ainda assim, tanto em um caso como no outro, sempre encerramos a audiência ou leitura com aquele distanciamento naturalmente advindo da certeza de que voltamos à realidade (ausente no material assistido ou lido). Percebe?

"Eu sou o que eu lembro!"; isso diz respeito a mim. O que não lembramos diz respeito ao nada. Ao vazio. Nunca aconteceu.

Senti uma leve inclinação de evocar o filme "Blade Runner", mas eu levaria este texto para a direção oposta àquela que lhe cabe. Com efeito, evocar o magnífico discurso final do Roy Batty (Rutger Hauer), trazendo os paralelos com tudo o que eu lembro e que ninguém mais poderá lembrar no meu lugar (portanto, morrerá comigo), diria respeito, justamente ao que existe, enquanto eu e meu banco mnemônico existirmos, passando à inexistência quando eu me for. Ninguém poderá lembrar do meu primeiro beijo, do prazer que a chuva me causa, dos sentimentos que aquele livro inspirou, do arrependimento de ter comprado aquele lanche, etc.

Para o presente texto faz mas sentido, talvez, o "Viva! A vida é uma festa!". (ATENÇÃO! Haverá spoiler a partir deste ponto).

Por mais que a situação do Héctor pareça nos colocar no mesmo ponto em que estava o Roy, precisamos tomá-lo, momentaneamente, como a coisa lembrada (pela Mamá Ines), não como o ente que lembra. Todo o drama da narrativa (no filme e neste texto) orbita o fato de que ele deixará de existir exatamente quando não existir mais pessoa viva que se lembre dele. O elemento lembrado deixa o Universo com o ente que lembra. Vale para pessoas, coisas e momentos.

Nossa presença, como ente que lembra, como singularidade mnemônica, muito mais que como presença física e/ou agente social, é que garante a manutenção, no tempo, de todo o passado (tanto quanto possível) que carregamos conosco. Morre um pouco do Universo cada vez que esquecemos um evento. É natural do processo de existir, tanto nosso quanto dos fatos. O passado vai se diluindo, se desfazendo, se desconstruindo, mas deixa um eco, e enquanto esse eco dura, ele existe. Você lembra?


Notas:

1. Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!)

2. Leia Saudade 

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