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Há anos ocorrem ricos diálogos sobre Civilização Humana e Filosofia, Teologia, História e Cultura em geral! Tudo que possa interessar a alguém que espera da vida um pouco mais que outra temporada de BBB! Após diversos convites a tornar públicos estes diálogos, está feito! Quem busca uma boa fonte de leitura, por favor, NÃO VISITE este site. O que esperamos, de fato, é a franca participação de todos, pois não se chama “Outros Discursos”.

domingo, 30 de junho de 2019

Antepassados

     Não leio tanto quanto deveria, mas leio sempre que possível. Minhas investigações são preponderantemente espirituais. Por muito tempo detive-me na leitura e reflexão sobre o hinduísmo, sobretudo o pensamento Vaishnava. Em sucessivas leituras do Bhagavad Gita (Leia Um Deus Esclarecido), Krishna me convenceu que, existindo um Deus, Ele é infinitamente amoroso e tolerante, indiscutivelmente esclarecido, diametralmente oposto ao Deus ciumento e rancoroso que a cultura cristã nos apresenta.
     Despido assim de qualquer medo em relação à escolha de um deus ou deuses (atribua-lhe[s] o[s] nome[s] que desejar. Ele[s] se reconhece[m] em todos os nomes) , lancei-me em outras leituras. Estes passeios levaram-me a tímidos contatos com um tal "paganismo germânico". Um conceito ainda muito nebuloso (para mim) sobre experiências e tentativas de restaurar, tanto quanto possível, a visão de mundo  e sistema de crenças dos antigos pagãos do Norte da Europa pré-cristã. É algo frágil, salpicado de preconceitos (há grupos neo-nazistas que se declaram representantes destas linhas), embriagado de romantismo (vide o sucesso de Vikings e da Marvel), mas, ainda assim, com muita gente tentando construir algo sério, coerente (inclusive na perspectiva histórica) e humano, o que inclui total abominação a qualquer tipo de preconceito (encontrei muita coisa interessante, séria e sensata em https://asatrueliberdade.com).
     Mas não estou aqui para fazer apologia ao Hinduísmo ou ao Heathenry (nome guarda chuva que abarca todos os experimentos de paganismo germânico da atualidade). Na leitura sobre as práticas e visão de mundo dos povos germânicos antigos (não confundir com alemães) fui particularmente cativado pelo profundo relacionamento com os antepassados, donde deriva a reflexão a seguir.
     Este texto não é um projeto de conversão para céticos. É um convite à reflexão para aqueles que, a priori, admitem uma aura metafísica na existência do Universo. Ainda assim, se este não é o seu caso, se você se declara materialista convicto, ateu, etc., não vá embora. Estamos no campo da especulação e tal exercício é muito rico. Ao fechar um livro você é mais do que era antes de abri-lo, mesmo que não tome como factual todo o conteúdo de uma obra ficcional; agora voltemos aos antepassados. Lembre-se, seja por fé, seja por exercício especulativo, estamos dentro da (aceitando como fato a) hipótese da existência metafísica inerente ao universo físico que nos rodeia.
     Dentro deste exercício, devemos pelo menos especular como factíveis as expectativas espirituais (e eventuais experiências místicas) das mais diversas práticas religiosas existentes (sem discussões sobre quais estão certas ou erradas).
     É natural, na atualidade, uma profunda imersão em visões de mundo derivadas do contexto cristão, ainda que você não o seja. Neste ponto, a experiência espiritual é (deverei ser; procura-se que seja) conduzida por lideranças religiosas (católicas e protestantes) em direção a uma comunhão com a divindade, com Deus. Neste cenário, o relacionamento com os antepassados é nulo; no máximo uma prece, missa ou culto solicitando a Deus que cuide daquela alma. O relacionamento é com Deus, não com o parente.
Neste ponto alguém poderia evocar o Espiritismo, mas penso que não é diferente do exemplo anterior. A relação não é direta com o ente querido, é intermediada (ora bolas, temos um médium), e não é constante, são momentos específicos, para transmissões de eventuais mensagens e fim (a parte católica/protestante eu conheço. A parte espírita eu especulo. Fiquem a vontade para ajustar). De qualquer modo, a relação é fragmentada.
     Por outro lado, na leitura de alguns textos Heathenry identifiquei (atenção! posso ter interpretado errado) que na visão de mundo do antigo pagão a relação com os deuses era ininterrupta e a com os ancestrais também. Estariam o tempo todo ao nosso redor, conectados conosco, compartilhando nossa história. Isso parecerá estranho para muitos, primitivo, incompatível com o racionalismo do homem moderno, mas quero que observe com mais atenção (e isso vale até para o ateu): seu repudio imediato à ideia de um relacionamento direto com os antepassados deriva mesmo do pragmatismo e materialismo modernos? Ou seria um preconceito (mesmo inconsciente) herdado de nossas raízes cristãs?
     O antigo homem do norte dialogava com seu pai morto; com o avô; com ancestrais cujos rostos nunca viu, cujos nomes nunca ouviu; Ele não era médium; O pai não respondia, nem os mais antigos, Mas ele se sentia acolhido; escutado; quase adivinhava a resposta; assistia-a na vida, nos eventos do dia-a-dia. Por que este diálogo silencioso nos é tão estranho, distante, primitivo, quiçá infantil, se toleramos ou até mesmo praticamos diálogos semelhantes com a divindade cristã sem qualquer constrangimento? E, se perguntar, o fiel moderno te dirá "Me senti acolhido; escutado; senti a resposta; a vi na vida; nos eventos do dia-a-dia".
     O rompimento com os antepassados não é natural! Por milhares de anos as mais diferentes culturas cultivaram esta prática profunda e bela: O diálogo com os Antepassados. Em poucos séculos esta característica tão profundamente humana  foi estrangulada, arrancada de nós. Isto não foi uma evolução intelectual, muito menos espiritual (embora pareça ser ambas), mas sim um deliberado projeto de controle moral e, sobretudo, financeiro.
     O antigo homem do norte dialogava com os ancestrais; fazia-o em casa, ao redor de uma fogueira, perto de uma pedra especial no bosque; mesmo fora destes momentos e locais especiais, mantinha-os na mente, no coração; era um relacionamento íntimo, constante, gratuito. Era, sobretudo, auto-suficiente, autônomo: "Quem pode se colocar entre mim e meu pai? Quem ousa por preço no acesso ao meu avô? Eles estão logo ali, me assistem, acompanham, orientam.". Isso não é um bom negócio para os vendedores de fé. Mas como acabar com este panteão pessoal, cada casa com toda uma família de entes que lhes assiste e protege? Como fazer pessoas independentes depender de algo externo?
     Uma primeira estratégia (terrivelmente eficaz, caso contrario o presente texto não existiria) foi a institucionalização do culto ao antepassado. O que é isto? A deliberada e sistemática substituição da infinita multiplicidade de ancestrais consanguíneos por ancestrais artificiais, catalogados, perfeitamente controláveis. Ancestrais guardados em templos específicos, que você precisa visitar em dias e horários específicos e, frequentemente, fazer uma oferta à instituição mantenedora daquilo tudo. A devoção passa a ser controlada, sistematizada, heterônoma e rentável. O novo homem do norte, do sul, do leste e do oeste, fala com o santo.
Um pouco mais tarde alguém vai achar que até a pluralidade dos santos é excessiva e mediante protestos (palavra não escolhida aleatoriamente) erigirá um único individuo para foco devocional. Todo o resto fica igual: visitas em dias e horários específicos; frequentes ofertas à instituição mantenedora de tudo.  O novíssimo homem do norte, do sul, do leste e do oeste, fala com "O Filho do Homem".
     Neste cenário de reflexões "fui à padaria olhando as estrelas. Pensei em meu pai, minha mãe, meus avós. Pensei, sobretudo, nos #Ancestrais cujos nomes não conheço. Quantas vezes olharam o mesmo céu? Uns com deleite, outros pedindo algo. Na rua, no quintal, ao redor de uma fogueira, cruzando o oceano..." (@PhdCelo via twitter, em 23/6/2019). Não consigo mais parar de pensar nos antepassados. Ainda em 23/6, um pouco mais tarde, pensei (e publiquei) o seguinte: "Algo me pesa no coração. Vejo seus olhares, seus desejos, seus temores. Sonhos não realizados. Lutas pela sobrevivência. Fome em uma grande seca. Afogamento em um grande naufrágio. Doença. Guerra. Ouço suas vozes. Muita alegria, muita luta, muita dor, muito ódio. Incontáveis gerações. A religiosidade moderna nos arrancou algo lindo: O Culto aos Ancestrais. Não falo de espiritismo. Falo de devoção, compreensão, gratidão. Algo nos foi roubado em detrimento de fantasias. É incontestável que meus ancestrais existiram. Pode-se dizer o mesmo de qualquer deidade? Algo belo e rico nos foi tirado. Hoje os vi. Falei com eles. Algo belo e rico foi recuperado. Olhem para as estrelas."
     Por outro lado, removidos os interesses financeiros e controladores que determinadas forças religiosas tiveram em usurpar nosso relacionamento com os antepassados, a prática em si teria sobrevivido? Ou realmente teria sido afogada pelo "brilhantismo" intelectual do homem contemporâneo? Ora, o ateu é ateu. Em sua adoração ao materialismo (uma escolha, como qualquer outro teísmo. Leia Uma Questão de Fé) deixa em igual irrelevância (primitivismo, infantilidade) a adoração a um Deus ou o culto aos antepassados. Mas, e para os teístas (que também repeliriam, na conjuntura atual, o relacionamento com os ancestrais)? Será que o conjunto de pessoas teístas, sobretudo para o conjunto de pessoas que admite uma subjacência metafísica para o universo dado, aceitaria, ainda hoje, a relação com seus ancestrais, se não tivesse sido colocado em prática o projeto cristão de centralização da fé?
     Para responder estas questões, convido-o a fechar-se em seu universo interior. O que lhe é mais íntimo em sua experiência subjetiva? Deus? É claro que não. Deus é um ente externo. Por mais que repitamos "Ele está em toda a parte!", na prática, o deixamos do lado de fora. Pode-se orar, pode-se buscá-lo, podemos até falar "Deus está em você! O Espírito Santo se move em você!" (canção de meu passado cristão), mas na prática não vivemos isso. Deus é externo. Seu primeiro nível de intimidade é com você mesmo. Nada lhe é mais íntimo que você mesmo. Conhece seus desejos, erros, fraquezas. Não é possível segredo. E qual o segundo nível de intimidade? Um agente externo. O vizinho? o colega de trabalho? Não. Deus e a família (ficou piegas. Desculpe. Já já superamos isso). Sua mãe te viu nu(a). Seu pai te viu chorar. Sua irmã ouviu que estava apaixonado e não tinha coragem de se declarar. Deus te viu nu(a); Deus te viu chorar; Deus te viu se apaixonar (releia o terceiro parágrafo. Lembre que estamos dentro da hipótese da existência de deus[es]). A família e Deus compartilham o segundo nível de intimidade? Não. Tua mãe te cobriu; teu pai te abraçou (Ou disse "Vire homi, rapá!". sei lá); Tua irmã te encorajou!  (Ou disse "Vire homi, rapá!". sei lá [de novo]). E Deus? Bem. Ele deve ser um cara ocupado. E/ou se reserva o direito de observar amorosamente de bem longe.
     Disto deriva que, se nossa vida espiritual viesse em linha reta deste a antiguidade, sem o projeto deturpador e usurpador ocorrido na ascensão cristã, mesmo na modernidade, apesar do fervilhar materialista que se apresenta, a grande fração da comunidade humana ainda voltada à atividade religiosa estaria ainda profundamente envolvida com o culto aos antepassados, provavelmente de modo mais constantes e profundo que suas atividades de busca e comunhão com Deus. Note: Mesmo um teísta pode contestar a existência de Deus. Este Deus pode não existir, em detrimento do outro. Deus, ou deuses, pode(m) existir, mas talvez (provavelmente) não como me narram que é (são). Nunca vi Deus. Só sei o que escuto. Não vi seu rosto. Não sei nem seu nome (é possível que o nome de Deus seja pronunciável em língua humana? Provavelmente os ruídos com os quais os nomeamos não passam de apelidos, aos olhos e ouvidos deles); Mas conheço o nome e a voz de minha mãe, o rosto do meu pai, o gosto do sagu da minha avó, o amargor do chimarrão do tio da minha mãe, as piadas semi-engraçadas do irmão do meu pai, etc. Eu não sei se Deus existe. Eu não sei qual(is) deus(es) existe(m). Eu não sei o quanto minha existência depende destas existências. Mas sem minha mãe, meu avô, e uma incalculável linha de gerações que os antecederam eu não poderia existir. É possível presumir que o Universo exista sem um Deus (não o fosse, não seria possível o ateísmo). Mas o Universo não existiria (para mim) se um de meus ancestrais tivesse morrido antes de gerar o próximo. Imagine quantas vezes, na história da humanidade, um indivíduo anônimo esteve entre a vida e a morte (a luta contra uma doença, o assalto de uma tribo rival, o ataque de animais selvagens, uma queda tentando ultrapassar um grande obstáculo, uma tempestade, um naufrágio, etc.) e, em caso de morte, toda uma linha de gerações teria sido interrompida e você não estaria aqui para ler este texto.
     Se toda esta linha de pessoas, esforços, lutas, lágrimas, vitórias, frustrações e tantas outras profundas histórias não são dignas de honra, respeito, preces, quiçá ofertas, o que mais neste Universo poderia ser?

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