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Há anos ocorrem ricos diálogos sobre Civilização Humana e Filosofia, Teologia, História e Cultura em geral! Tudo que possa interessar a alguém que espera da vida um pouco mais que outra temporada de BBB! Após diversos convites a tornar públicos estes diálogos, está feito! Quem busca uma boa fonte de leitura, por favor, NÃO VISITE este site. O que esperamos, de fato, é a franca participação de todos, pois não se chama “Outros Discursos”.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Relacionamento Opressor

     Sou homem! ao dizê-lo, preencho-me de todo o preconceito que a necessidade deste tipo de (auto+re+) afirmação transporta ("homem" como entidade nascida com aparato reprodutor masculino e preferência por entidades de aparato feminino). Sou homem! Ao dizê-lo, carrego comigo toda a solidão disfarçada de fé herdada de meus ancestrais ("homem" como indivíduo humano, racional, parcialmente espiritual e plenamente carente de significado). Sou homem! Ao dizê-lo, reafirmo que acompanho meus pares na alucinada e sufocante luta por sobrevivência, curiosamente garantida pela sociedade; curiosamente torturada pela mesma sociedade ("homem" como entidade social, simultaneamente homogêneo e heterogêneo ao meio).
     O texto a seguir não é sobre masculinidade, heterossexualidade e relacionamentos. É sobre Deus. Ocorre que para demostrar como me sinto, preciso deixar evidente que não importa o sexo e a sexualidade do indivíduo, na relação com Deus nossa figura é sempre a do ente feminino. Eu conheci uma moça que dizia "Eu sou do Meu Amado e o Meu Amado é meu". Ela não falava do namorado e certamente não se referia a mim. "Meu amado" era (espero que ainda seja) Deus. Tal frase, naturalmente, tem muito mais significado e beleza na voz feminina.  O amor do homem é frequentemente alterado pelo desejo carnal. Pelo desejo de propriedade. Pelo desejo de conquista. Isto não significa que ele não ame, mas na mente masculina as fronteiras são pouco claras. Na mente feminina amor é amor e é um fim em si mesmo. Ama mesmo sem sexo, mesmo sem  toque, mesmo sem recompensa, mesmo sem reciprocidade.
     Quem ama Deus como mulher, ama Deus ("Eu sou do meu amado...). Quem ama Deus como homem, deseja extrair algo de Deus! ("Me conceda...", "me proteja...", "me ajude...").
     Aqui devo observar que este texto não é uma apologia ao amor feminino, tampouco uma crítica ao masculino. Quero falar do meu relacionamento com Deus, de como ele (o relacionamento, não Deus) é feminino e de como, no meu caso, ele não é belo como indicam os dois últimos parágrafos.
     Existe uma mulher que namora um cara. Ela o ama desesperadamente. Ele a oprime de forma mestral. O relacionamento dos dois é marcado por três estágios cíclicos:
  1. No primeiro ele a despreza. Ela é invisível para ele, ficando ela confinada à incerteza e solidão. Ela lhe dirige a palavra e recebe silêncio. Lhe oferece presentes e estes são jogados de lado, decompondo-se a vista de todos. Ela o ama, assim, releva tudo isso. Ela o vê como provedor e mantém em mente que a providência é a forma com a qual ele demonstra o amor. A providência, porém, é omissa. Ele não fica em casa. Não a guarda dos ladrões, não a aquece no frio. Ela, cega de amor, releva o abandono.
  2. No segundo estágio ela é o completo e único foco da atenção dele. Neste estágio ela percebe que o desprezo, a solidão, o medo, o frio e os assaltos do primeiro estágio eram a melhor fase do relacionamento. Ele quebra o que ela ama, subtrai tudo que lhe é mais caro, lança-a aos mais penosos trabalhos, fere-lhe a alma, o coração e o corpo por simples deleite. Os ataques são metódicos. Não há cálculo de aleatoriedade que possa mascarar a intencionalidade de ferir. Ainda assim, ela pensa que foi um acidente. Pensa que certamente foi mais uma omissão dele (ela se apega ao primeiro estágio), nunca um ato direto e deliberado.
  3. O último estágio nasce da insustentabilidade do segundo. Feriada com tanta frequência e crueldade ela o deixa. Jura pras amigas que foi a última vez. Jura pra si mesma que agora acabou. Garante que se ama mais que a ele. Depois diz que ele morreu. No fim garante que ele nunca existiu; não é nem nunca foi nada. Em um mês ele dá um "Oi". Na semana seguinte ela o abraça e o primeiro estágio recomeça. Aqui é bom notar que ele só disse "Oi". Talvez nem isso. Talvez uma amiga diga que ele mandou um "Oi" e lá vamos nós de novo. Ele não jurou mudar. Disto deriva que não há estágio intermediário de "mil maravilhas" na transição do 3 para o 1. Ele nem se dá o trabalho de simulador carinho por ela. Qualquer suposta demostração de afeto da parte dele não passa de projeção das expectativas dela.
     Sou homem e como entidade social, simultaneamente homogêneo e heterogêneo ao meio, preciso que tal sentimento seja publicado, não porque desejo apoio, mas por necessidade de apoiar. Estamos sozinhos em relação a Deus, mas não podemos ser sozinhos em relação a nós mesmos.
     Sou homem e na condição de indivíduo humano, racional, parcialmente espiritual e plenamente carente de significado, sei que a vida humana é feita de sofrimento, cansaço e decepção. O vazio da descrença é o lugar mais seguro em um mundo em que tudo é dor.
     Sou homem e -apesar de ser entidade nascida com aparato reprodutor masculino e preferência por entidades de aparato feminino, portanto, heterossexual e preconceituoso- reconheço e admito que na relação com Deus eu sou mulher. Não sou a moça da bela frase emprestada dos "Cânticos: 6, 3"; sou a mulher da valsa (1, 2, 3, 1, 2, 3 ...) Sustentei com alegria e satisfação o estágio três por tempo considerável. Hoje o "Oi" me arrebentou a cara (a semelhança com "arrebatou" foi acidental, mas veio a calhar). Procurei algo para ouvir enquanto trabalhava. Queria música. Rock. Encontrei um áudio book de uma versão comentada do Mahabarata (foco no advento de Krishna). Ouvi por mais de duas horas na mais tosca versão de "desliga você! Não, desliga você!". Meu sentimento agora é de auto-traição, como a moça que retribui o aceno do patife e depois fica se odiando por ter dado confiança/liberdade. O grande desejo que me centra agora é garantir a não recaída. Eu fui do meu amado e meu amado era Deus.

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