Eu passei algumas horas postergando o início deste texto; olhava a palavra e não conseguia vislumbrar uma via para explorá-la; parecia demasiadamente célebre para que o produto de um anônimo fizesse sentido. Vencido este dilema, lancei-me ao que segue.
Se li o Michaelis corretamente, não há conexão semântica entre "celebre" e "celebrar", ainda assim, parece-me digno de nota, mesmo que apenas por semelhança, que a raiz da palavra de hoje nos remeta à ideia de celebrar alguém.
Celebrar é comemorar, mas também é enaltecer, louvar, assim, reconhecer a celebridade de alguém nada mais é que celebrar este mesmo alguém. Celebramos pessoas que de alguma forma nos pareçam louváveis. Talvez eu deva me corrigir e mencionar que, celebrávamos, em algum momento ideal passado, pessoas louváveis; hoje celebra-se quem a mídia decide que se deva celebrar.
A afirmação anterior torna-se equivocada no momento em que é emitida, não por ser falsa ou incorreta, mas porque o mundo já mudou e ela já foi superada; houve momento, há pouco, no qual a mídia selecionava as celebridades; durou um instante; atualmente as celebridades são escolhidas e mantidas pelos algoritmos. Há sistemas avaliando nossos gostos e, de algum modo, editando-os, de forma que realizam uma operação paradoxal de apresentar o que desejamos de forma quase saturada, ao mesmo tempo em que, sutilmente, vão alterando nosso desejo, conforme as intenções do mercado.
É nesse mecanismo altamente complexo (o sistema está rastreando e mostrando o que eu desejo ou editando o meu desejo?) que as celebridades atuais são construídas, por um método de afirmação e reafirmação (apresentação e reapresentação) que satura nosso universo de visualizações (de consumo?) com personalidades específicas enquanto restringe o acesso a outras, potencialmente interessantes, mas sem valor para o mecanismo.
A forma pela qual os mecanismos modernos selecionam as celebridades transcendem as banalidades anteriores relacionadas a estética e atratividade (compare um galã de novela de 10 anos atrás e uma super celebridade atual do youtube) e convertem-se em sujeitos com persuasão ou qualquer outra característica capazes de nos prender à tela. O diamante atual é garimpado dos anunciantes a partir do tempo de tela dos produtores de conteúdo, as celebridades da atualidade; o golpe da picareta é um movimento polegar para cima.
É um jogo sutil entre o algoritmo procurando apresentar coisas que nos interesse, produtores desesperados produzindo todo tipo de conteúdo para ver se um, em segundos de visualização, nos convence a parar de rolar e o nosso tédio, saturados que estamos, rolando para cima sem parar, desprezando o que era interessante momentos atrás em busca de algo que nem sabemos o que é .
Pobres celebridades! Não produzi este texto para criticá-las, denunciá-las como supostas vilãs no jogo dos anúncios virtuais. São tão vítimas quanto você e eu. Estar do lado oposto da arena de gladiadores não os faz automaticamente maldosos ou maliciosos (ainda que exista quem o seja); somos todos vítimas, capturados em confrontos pretéritos e lançados nessas batalhas para deleite do mercado.
Os pagamentos milionários que algumas destas celebridades recebem não são nada perto da arrecadação dos veículos, a qual é ínfima perto do lucro do anunciante (do contrário, não pagaria a anúncio). Milionários à parte, milhares de outros produzem conteúdos exaustivamente enquanto sonham com aquele único vídeo "certo" que os levem ao topo. Não é questão de talento (apenas), mas também de muita sorte. Quantos mestres do futebol devem ter nascido e morrido anônimos por simplesmente não ter tido a chance de ser descobertos? O mesmo vale para as celebridades digitais; quanta coisa excepcional se pode perder pelo cara ou coroa do algoritmo? É um jogo; uma aposta. Jovens de hoje sonham mais em ser "streamers" que cursar uma graduação (estou narrando; não julgando); é a nova resposta à "o que você quer ser quando crescer?" , em detrimento dos velhos sonhos (policial, astronauta, jogador, etc.). Bem ou mal, à revelia da crueldade do algoritmo, há de se admitir que esse universo é muito mais democrático que o dos velhos sonhos, pois a rede está cada vez mais acessível; dá voz ao rico e ao gueto (sei que não em pé de igualdade, mas dá).
No meio de tantos desastres, sequestros de vidas e de recursos pela impiedade dos meios digitais, celebremos o vislumbre de mudança: O acesso do pobre anônimo aos meios de produção de conteúdo pode fomentar as revoluções de consciência que a velha mídia impedia (não interessavam) e pregar uma peça nos donos dos algoritmos; passaríamos a celebrar pessoas melhores, conteúdos mais significativos e esse reconhecimento espontâneo (e massivo) de nossa parte forçaria o sistema a se dobrar a estas pessoas, louvando-as ele também. Novas Celebridades para um novo mundo.
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