Já ouviu aquelas comparações entre casa e lar? "Todo lar é uma casa, ainda que nem toda casa seja um lar". Não seria difícil aproveitar a inferência e, simplesmente, substituir "lar" por "abrigo".
Por outro lado, parece-me que embora seja fácil defender que encontramos abrigo onde estão nossos lares (quando há lares), há abrigos externos aos lares e casas.
Em um súbito temporal, distantes de nossas casas ou lares, procuraremos abrigo nas adjacências: abrigo será qualquer espaço que forneça segurança e, se possível, esteja seco.
Não quero, em hipótese alguma, inferir que um abrigo seja menos que um lar; o que desejo, pelo contrário, é chamar a atenção para a situação de desarmonia, tensão e/ou crise, aqui representadas pela tempestade, na qual um abrigo seja necessário e nem sempre o lar esteja disponível ou seja suficiente.
Ainda na perspectiva da "catástrofe", pode ser que o lar esteja disponível, que já tenhamos conseguido chegar em casa, mas por mais que ele seja pacífico e acolhedor em períodos mais tranquilos, poderia sucumbir a um vendaval ou terremoto. A depender das condições externas, precisaremos deixar nossos lares em busca de abrigo.
Você percebe? Há algo mais em um abrigo, que nem sempre a casa e/ou o lar poderá(ão) fornecer.
Transportando esse cenário para o campo que nos interessa, a saber, o da afetividade e das relações, parece coerente inferior que existem relações/interações que assumem a configuração de rua, de casa, de lar e de abrigado (sem descartar córregos e terrenos baldios [risos]).
O volume (a representatividade) de cada tipo é fácil de intuir/imaginar; trata-se de algo que poderíamos representar em um triângulo dividido em faixas (pirâmide da qualidade das interações), sendo as mais baixas e amplas as de relacionamentos/interações equivalentes aos córregos, terrenos baldios e ruas (ora totalmente estranhas, ora familiares), as camadas centrais, portanto, menos volumosas, compostas pelas relações equivalente às casas, a penúltima, os já rarefeitos lares e uma ínfima ponta corresponderia aos abrigos.
A "pirâmide da qualidade das interações" nos mostra as proporções, não as características, portanto, convêm tentarmos entender o que cada um desses níveis representa:
• O córrego, quem vive em grandes cidades entenderá, não é o regato, ainda que o dicionário me contrarie. O córrego tem em si a sujeira de toda uma população, acompanhada da capacidade de, em caso de tempestades, submergir e invalidar as outras camadas que iremos avaliar, exceto a última. As enchentes destroem casas e lares físicos e afetivos. Nas interações sociais é córrego cada pessoa que despreza sua existência subjetiva e te reduz à necessidade imediata dela: "me dê o que eu quero!", quando você está atendendo um cliente, "você não é nada", tanto naquele atendimento quanto em outras interações, "você precisa de mim", tanto na hierarquia familiar quanto profissional; e tudo isso se soma no "sem mim você não é nada!".
• A rua desconhecida, aquela na qual fui parar porque me perdi no uso do Waze, ou desci no ponto errado do ônibus, ou quando fiz tudo certo e, ainda assim, não tenho ideia de onde estou e não me sinto seguro, representa, em uma projeção para os cenários comportamentais, sociais, relacionais e afetivos, aquelas situações e interações nas quais não sei onde estou, "piso em ovos" e tomo todo o cuidado, em cada gesto, em cada ato, em cada frase, para não me expor em demasia, não não ser "lido" incorretamente e para não me expor a riscos desnecessários. É "rua desconhecida" cada estranho que vê em você a oportunidade de obter algo, como um elo frágil que, com o estímulo correto, sucumbirá e entregará o que o ele procura.
• A rua conhecida é curiosa. Passei aqui um milhão de vezes, ainda assim, nada garante que justo naquela noite, naquele horário, esteja presente uma ameaça que eu não previ. Vale para aquele amigo da rua, colega do trabalho, amigo da escola/universidade/pós graduação, que tinha todas as características de "aliado" até o instante anterior e, agora, converteu-se em ameaça. Eu moro em minha casa atual há 40 anos. Mudei-me por um tempo, enquanto estive casado, mas agora retornei. Ali, no fim da rua, há um beco. Todo o dia eu passo por aquele beco. Todo o dia eu "vejo" naquele beco, caído, o personagem de um livro que eu comecei décadas atrás e não concluí. O cara do livro estava arrebentado. você entende? O lugar é familiar , mas nada garante a segurança.
• A casa é um tipo de alicerce; um lugar seguro, com paredes para nos proteger do vento, do frio, da chuva. Mas a casa não nos protege do que está dentro dela. A casa despreza os abusos, os desrespeitos, as ofensas que os "entes queridos" emitem aproveitando a chancela da "família". A casa nos protege das dores físicas para nos mergulhar nas dores emocionais que nascem da imperícia afetiva de nossos familiares. É aqui que reside toda a desesperadora necessidade de terapia de todas as gerações, de todos os entes viventes.
• O lar; o lar; o lar; um lugar quase mítico, pois poucos experimentaram. Há conforto, aceitação, compreensão, deleite. É quase mítico. Eu não sei se já estive lá. É quase mítico. Se você morou ali, por favor, me descreva. Não tenho dados empíricos, e não desejo especular.
• MAS, o abrigo. Ah! O abrigo! O lar é para onde eu iria quando tudo estivesse bem. O lar é um lugar de "aqui tudo é bem" no qual eu poderia repousar quando "tudo está bem". Mas, para onde ir quando nem tudo está bem? O lar pode não estar pronto para me receber; o lar pode nem sequer ser o melhor destino, posto que eu sou o portador da desarmonia que não deveria ser instalada no lar. Para onde vou? Há, penso, uma ou duas pessoas no mundo; UMA OU DUAS PESSOAS NO MUNDO, capazes de ser abrigo contra qualquer coisa, tempestade, terremoto, queda da lua na Terra, explosões solares, problemas no trabalho, desilusões amorosas etc. Elas existem! Eu vi! Elas existem!
• Abrigos mágicos, míticos, místicos, magníficos e, ainda assim, concretos, tão próximos quanto um "Oi! Tudo bem? Quer conversar:" ou um "Respire!", ou um "Meu amigo. Vou na sua casa. Me espere. Já chego!" em um sábado à noite poderiam ser. O abrigo é a escuta, o abraço, o suporte, ainda que não tenha respostas ne m soluções. O abrigo é, sem saber, sem pretender, a origem do fôlego que nos faltava. O abrigo vem em diz (e é) "Eu não sei. Me perdoe. Eu não sei. Mas eu estou aqui, Por favor, não se sinta sozinho. Eu estou aqui. FICA COMIGO!", e isso é a maior riqueza que se pode obter nessa existência.
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