Cabeçalho

Há anos ocorrem ricos diálogos sobre Civilização Humana e Filosofia, Teologia, História e Cultura em geral! Tudo que possa interessar a alguém que espera da vida um pouco mais que outra temporada de BBB! Após diversos convites a tornar públicos estes diálogos, está feito! Quem busca uma boa fonte de leitura, por favor, NÃO VISITE este site. O que esperamos, de fato, é a franca participação de todos, pois não se chama “Outros Discursos”.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

#Verborragia: Pinturas

 Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Por favor Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!).  A palavra de hoje é #Pinturas. Não tem como não pensar no texto recente, "Retrato", mas vou procurar seguir via distinta.

O site que gera as palavras colocou a de hoje assim, no plural, portanto, fica imperativo que o "s" não seja desprezado, nas o que poderíamos falar de pinturas, em detrimento de uma única pintura isolada? As pinturas são, histórica e pré-historicamente, formas de manifestação humana, caminhos de expressão desde sua origem. Constantemente empregamos o termo "animal racional" para distinguir a espécie humana das demais mas essa descrição é precária, incompleta, pois também somos seres afetivos. O homem, ainda que parcialmente racional, é profundamente sentimental. Sente medo, ansiedade, saudade, frustração, afeto, carinho, amor, etc. Suponho que não apliquemos o termo "animal sentimental" para nossa espécie justamente por saber que isso nos aproximaria de outras espécies, sendo que procurava-se um termo para nos destacar. Ora, os animais sentem (talvez mais e melhor que o homem), mas não pensam (supõe-se). Essa necessidade patológica de nos destacar de nossas características mais elementares, como se ter sentimentos nos reduzisse a animais (como se ser animal fosse uma redução), é sobrepujada por rompantes de sentimentalidade e, eventualmente, transborda nas manifestações que convencionou-se chamar de "arte".

Se alguém me perguntasse eu diria que as manifestações mais antigas de arte devem ter sido o canto e a dança, porém, é elementar que o registro mais antigo sejam as pinturas. Ainda que seja fácil inferir que a escrita tenha se desenvolvido a partir das pinturas, há algo nessas que transcende o que se pode transmitir na palavra escrita. Isso é curioso: somos seres idiomáticos (leia o texto Ser humano), mas ainda que a grande parte de nossa existência interior ocorra em um idioma, há algo ininteligível que só pode ser percebido (quiçá compreendido) e transmitido em imagens, assim, há algo nas pinturas que evoca mais do que se teria podido transmitir com um texto.

Do mesmo modo que as pinturas são anteriores à escrita, a capacidade de "visualizar" imagens ausentes à percepção imediata, ou seja, a capacidade de imaginar, é anterior à tentativa de fixar nas pinturas aquilo que se estava imaginando. Não é difícil pressupor que ver, por esforço imaginativo, algo que está ausente (e registrá-lo ou não) foi rapidamente acompanhado da capacidade de imaginar (e registrar) elementos nunca vistos; a imaginação dava espaço para a criação.

Desde muito cedo, parece-me, imaginávamos e registrávamos todo o tipo de elementos abstratos, concebidos apenas na mente, impossíveis de apontar na realidade; imagine a complexidade da mente que era capaz de perceber que seu próprio conteúdo era intangível e desejava comunicar ao próximo aquilo que vislumbrava apenas dentro de si; imagine a complexidade da mente que, convidada a observar as pinturas, compreendia que tratavam de elementos não localizáveis no ambiente e, ainda assim, tornavam-se compreensíveis a partir daquelas mesmas pinturas; a complexidade de transmitir algo que não era passível de localização, de exemplificação, talvez nem mesmo de descrição (sobretudo em épocas em que o próprio idioma era algo rudimentar) e, mesmo com toda a insuficiência idiomática (note que até hoje a língua está aquém do que somos capazes de imaginar) muito rapidamente reconheceu-se nas pinturas o grande potencial de transmissão, intercompreensão, compartilhamento da subjetividade. A mente já era absurdamente complexa, ainda que o idioma não o fosse, e os indivíduos se apresentavam uns aos outros no que tinham de mais íntimo, pessoal e quase intransferível, pelas pinturas.

A mente que imagina e pinta também é a mente que sonha; quão magníficos devem ter sido os sonhos (refiro-me àquilo que acontece quando dormimos; não às ponderações conscientes sobre o futuro que também convencionou-se denominar "sono") destes primeiros homens, ainda não completamente racionais (naquilo que supomos hoje ser a racionalidade) e, por isso mesmo, ainda sem os diversos mecanismos de redução, eliminação e negação que operam atualmente. Sonhos magníficos, certamente.

Hoje o homem engatinha em seus estudos clínicos enquanto tenta resgatar a capacidade de reconhecer nos sonhos as mensagens que nossa fração não idiomática tem para nos oferecer; deve ter sido lindo quando o próprio idioma (ou melhor, a racionalidade) não estava completamente ativo(a), era, em todo caso, ainda fraco(a) demais, e o sonho era livre para nos levar onde desejasse levar.

Era bem ali, naquele momento de sonhos livres e pinturas, que nasciam (ou eram mais facilmente encontrados, pois não nos tínhamos programado para rejeitá-los) os deuses.

Nas pinturas e esculturas os homens (supostamente primitivos) eternizaram as criaturas mágicas e místicas que seu inconsciente localizava no mundo, ainda que seus veículos sensoriais nada pudessem dizer a respeito; convertiam o intangível em tangível com habilidade e dedicação; chega a ser um verdadeiro pecado que, tempos depois, determinado grupo tenha definido como sacrilégio a elaboração de representações de divindades; representar divindades é intrínseco à possibilidade de sua existência; é de nossa natureza a tentativa constante de inseri-las em nosso mundo pelas artes; fazíamos isso antes de qualquer outra atividade, arte ou ofício. É justamente ali, nas pinturas (e demais objetos devocionais) que a mente reencontra seu ponto de contato ancestral, conecta-se com a divindade como fazia no passado, encontra conforto, respostas, amparo. Mais que em textos sagrados (sem nunca desprezá-los, é claro), é nas pinturas que o homem encontra o meio de voltar a sonhar com seus deuses; não tem como não lembrar do Raul: "Eu, que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando, foi justamente num sonho que Ele me falou!".

Nenhum comentário:

Postar um comentário