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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

#Verborragia: Jornada

A palavra sugerida para hoje me pareceu tão suave e agradável quando foi proposta que comecei a escrever imediatamente. A palavra não carrega as tensões de potenciais sinônimos, ainda que saibamos que o processo, na prática, sempre as tenha. Mas essa ausência conceitual de tensões ( conceitual não. Algo na sonoridade. Uma suavidade de tom) confere suavidade ao processo. Tranquilidade em sua expectativa e realização.

Sei que você espera alguma profunda análise da jornada de nossa existência, do processo da nossa vida. Eu esperaria isso desta palavra, no mínimo. Contenhamo-nos, brevemente.

Pensemos, por ora, nas pequenas jornadas que realizamos cotidianamente. A jornada ao trabalho, enquanto percurso, e a jornada de trabalho, o dia te trabalho em si; o trajeto ao mercado, o itinerário do ônibus, o caminho da escola, o trânsito, etc. Todos os dias vivemos algumas jornadas pessoas, aplicando outros termos, conforme os exemplos acima. Cada jornada tem sua carga de drama, dificuldade, cansaço e, eventualmente, alegria ou conquista. Descaracterizamos as jornadas de sua natureza "jornadística" e tendemos a nos apegar aos aspectos menos agradáveis, ou tensos (para retomar o raciocínio inicial), passando a reduzir aquelas a estes, assim, "que trânsito horrível", "que dia cansativo", "que pessoa insuportável", etc.

Nossa lente para vislumbrar os momentos de nossa existência tende a ampliar estes aspectos, chegando ao ponto de enxergarmos apenas eles. Atingimos um estado no qual não há jornada, há drama, dificuldade e cansaço.

Se eu interrompo nossa reflexão e retorno ao início deste texto, buscando o sentimento puro que a proposição da palavra me deu, tenho duas descrições para o que senti:

A primeira é "café com leite bem quente". Gosto de café puro, com leite, cappuccino, e todas as variações possíveis, mas o café com leite, quando bem quente (e, sobretudo, em dias frios) me causa um deleite complementar ao do sabor (que tanto aprecio). A sensação do líquido quente movendo-se dentro do corpo, aquecendo-nos por dentro, parece um tipo peculiar de abraço. Eu sei que o aparelho digestivo não passa pelo circulatório, mas a sensação que tenho é que o café está abraçando meu coração. É a esta paz aconchegante que a leitura da palavra "jornada" me remeteu.

A segunda é "rocambole de doce de leite". Minha ex-esposa fazia um rocambole simplesmente perfeito (nota mental. Pedir um rocambole para ela). Tenho dificuldade de selecionar qual meu doce favorito, se chocolate ou doce de leite, mas no rocambole há um equilíbrio tão perfeito entre a suavidade da massa e a intensidade do doce de leite que beira a perfeição. É como o toque quente do sol numa manhã bem fria. Jornada também me deu esta sensação.

Sei que pareço exagerado, mas gosto da forma que sinto as coisas e foi isso que a palavra me fez sentir. 

Vou explorar uma terceira via (terceira descrição de sentimento). Tenho 41 anos e um sonho tardiamente realizado de ter moto (desde os 20). A vida, as jornadas, sempre me mantiveram em rotas que adiaram este sonho, até mês passado quando, finalmente, tirei o sonho da gaveta. Antes disso, a jornada ao trabalho, o percurso, era uma desagradabilíssima sucessão de baldeações de ônibus e metrô, tudo sempre lotado e lento. A moto substituiu essa experiência pelo trânsito, o qual, em São Paulo, não é experiência das mais agradáveis. Ainda que a moto reduzida as demoras sofridas pelos carros, não estou perito em corredores, assim, eventualmente, paro atrás de um carro. A grande virada é que o sonho da moto transformou a "jornada" de ida e volta do trabalho, outrora cansativa e enfadonha, em uma experiência de deleite. Com ou sem trânsito, estou sempre em um passeio. São Paulo não mudou, nem o trânsito, tampouco a má educação dos motoristas. Meu coração mudou. O percurso que antes era mero espaço a transpor converteu-se em oportunidade de passeio. Uma jornada desafiadora, mas agradável; Café com leite bem quente; rocambole de doce de leite.

Não nos é facultado driblar os desafios cotidianos, o percurso ao trabalho, o dia te trabalho em si, o trajeto ao mercado, o itinerário do ônibus, o caminho da escola, o trânsito, etc., mas temos a prerrogativa de selecionar os aspectos que os tornam aprazíveis. Não estou falando de pensamento positivo, olhar pelo lado bom, e tantos outros conselhos que nos dão diariamente. São bons conselhos, mas dá pra ser mais simples (e eficaz). Comecemos pelo exercício de reduzir a força de nosso apego (ou foco) aos (nos) pontos de tensão. A experiência é maior que eles. Há mais coisas acontecendo. Reduzir o apego a estes elementos tão específicos dá oportunidade aos demais aspectos daquela jornada de se apresentarem; de se fazerem notar. Quem sabe não surpreendem?

Expandir nosso campo de visão, remover o foco centralizado para abarcar o todo requer esforço e insistência. Os pontos de tensão são muito atraentes; chamam nossa atenção com facilidade. Aprendi com um professor de pilotagem que há um fenômeno chamado "travar o alvo". Quando você focaliza algo, você, inconscientemente, mira naquilo. Se você, com uma moto, em um corredor, focaliza o retrovisor do qual deveria desviar, você o atinge.

É nesse processo de "trava de alvo" que ficamos batendo repetitivamente nos elementos de tensão que desejávamos desviar e, com isso, convertemos ricas experiências, belas jornadas, em dramas difíceis e cansativos.

É isso. Nossa tarefa do momento é recuperar nosso relacionamento com nossas jornadas cotidianas, naquilo que são integralmente, sem "trava de alvo" em seus problemas. É difícil, eu sei, mas a gente consegue. Tenta, erra, volta, tenta de novo, erra menos, e assim por diante.

Isso feito, isso mantido, por quê precisaríamos discutir a jornada da vida? Será uma experiência bela, uma tapeçaria composta pelas infinitas jornadas menores. Admiremo-nos.


Para entender o motivo da Verborragia clique aqui (Participe! É grátis e fará um [pseudo]autor muito feliz!)

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