Não é impossível que a palavra sugerida para a reflexão de hoje lhe tenha trazido à mente aquele adereço usado pelas noivas, nas celebrações de casamento. Quando você pensa em adereço (palavra a qual eu já desejei ter como tema de reflexão, mas acho que ainda não é o momento), você acaba pensando nas características decorativas e/ou simbólicas da peça, não naquilo que ela é de fato.
O véu, seja ou não o da noiva, existe para encobrir; para esconder. Lança-se um véu sobre aquilo que não deve ser visto. No caso da noiva, entre outros significados e motivos, destina-se à esconder sua beleza até o momento em que o marido está autorizado a recebê-la como esposa, sendo então revelada a beleza que o véu encobria. Não sem motivo o termo "véu" é utilizado figurativamente em tudo o que é nebuloso, desconhecido ou misterioso, donde "o véu da noite", "o véu da ignorância", "o véu da morte" etc.
Se somos capazes de transportar a capacidade de esconder do véu físico para o mundo abstrato, talvez também possamos explorar sua característica mais simples: Ele pode ser removido com um gesto simples. Vamos passear pelas abstrações e conferir-lhes, tanto quanto possível, alguma claridade.
Se explorarmos a alegoria do "véu da noite", necessitaremos evocar os tempos de um mundo anterior à iluminação pública, às lamparinas, tochas e afins. Esse momento existencial no qual nos posicionamos agora, muito menos histórico que imagético, envolve-se de incerteza, receios e temores¹. O emprego da expressão "véu da noite" pode ocorrer:
A) Tanto para descrever o anoitecer concreto, efetivo, em uma narrativa qualquer, devidamente enriquecido da compreensão de que não se trata apenas do término de um dia, mas sim do encobrimento do que antes era claro, do "esconder" que o termo "véu" carrega consigo e empresta à noite;
B) quanto para sugerir um momento turvo de uma existência específica; um momento do dia ou da vida de uma pessoa no qual, seja dia, seja noite, estejam as luzes apagadas ou acessas, esteja ela sozinha ou acompanhada, ela se sente mergulhada em uma noite demasiada densa, quase sólida, que nenhuma luz atravessa, tal qual um véu.
Não vou falar de depressão², um estado emocional profundo e sério, que necessita de acompanhamento profissional constante e atento, cuja solução não se dará num tosco texto perdido aqui neste espaço. Por outro lado, para os episódios suficientemente espaçados (quiçá raros) para supormos acidentais e não patológicos, podemos procurar alternativas subjetivas, estratégias, atos ou exercícios que tenham o efeito de "levantar o véu", conferindo o acesso à luz que parecia ausente mas que, na verdade, estava a uma fração de milímetro de distância (referência à espessura de um véu). Quais exercícios? Compete a cada pessoa descobri-los; compete a cada pessoa descobrir-se. Tudo começa, porém, por compreender que não há noite escura, mas sim um véu, e que não há "distância intransponível" do Sol, mas sim uma pequena obstrução removível. O que eu faço? Eu respiro. Não é mágico; não terá eficácia geral; mas eu respiro. Meditação? Não. Eu vou para fora: quintal, sacada, rua. Eu preciso ter acesso ao ar vivo do mundo, externo à casa, senti-lo entrar em meus pulmões, tocar minha pele. Ali eu recupero a luz. Se o dia estiver frio, tanto melhor. A sensação do ar se deslocando pelo meu aparelho respiratório aprofunda a experiência e agiliza meu retorno à luz. Outros meios, conforme sua constituição pessoal poderiam ser: realizar uma atividade manual, limpar ou organizar algo, encontrar amigos (para desabafar ou apenas para rir) etc. Encontre seu caminho. Depois compartilhe conosco como foi.
Se passamos à análise do "véu da ignorância" fica evidente que aí o véu é aquilo que encobre o olhar da mente para tudo o que é coerente, sensato e lógico. A ignorância é a falta ou limitação de conhecimento; é "ignorar" os fatos da existência; é, portanto, ter a visão encobertar por um véu, mergulhando no perigoso caminho da superstição, da credulidade e da ilusão. Esse véu é mais perigoso, pois é atraente. É, na verdade, paradoxal: ele é repulsivo para quem não o veste, mas é belo e desejável para que foi por ele encoberto. Há um fenômeno social e psicológico chamado "dissonância cognitiva". Quando tiver tempo, pesquise a respeito, por ora ilustremos que o cara com o véu agarra o véu. A luz o incomoda. Ele faz o que for possível para manter o véu e repelir a luz. Como remover esse véu? Se/quando reconhecemos a ignorância instalada em nós mesmos e caso não estejamos em franca crise de "dissonância cognitiva", o meio simples e eficaz de remover esse véu é a busca consistente de conhecimento sobre o tema que ignoramos, com o maior número de fontes distintas possível, para comparar, confrontar e selecionar. Escolher uma única fonte pode ser, indiretamente e até inconscientemente, uma tentativa de manter o véu, caso abracemos uma fonte que apenas ratifique nossas opções anteriores. Se, por outro lado, o véu é em terceiros, a coisa fica muito complicada. Se o próprio sujeito não for capaz de notar minimamente as traves em seus olhos, dificilmente tentará removê-las e, em hipótese alguma, deixará que você o faça. Cabe a você decidir, a depender do valor daquela pessoa para você e da gravidade da ignorância observada, definir se vale a pena e permanência, a paciência e o esforço, ou se é melhor partir. RELEIA! "a depender …da gravidade da ignorância observada": Não vá abandonar uma amizade de anos porque a pessoa acha que lagartixas são insetos.
Finalmente, o que dizer do "véu da morte"? Esse véu tem a dupla função de:
A) Descrever o encobrimento perpétuo lançado sobre os olhos do ente que morreu, ao menos sobre os olhos físicos, a depender de sua visão de mundo e nível de abertura à "metafisicidade "; e
B) Encobrir os olhos de todos os vivos sobre os caminhos póstumos daquele que morreu, caso existam.
Aqui me deparo com uma aporia: Aquele ponto de uma reflexão filosófica no qual não se consegue mais avançar. Não é que me falta criatividade, mas é que chegamos em um véu cuja remoção não é, não seria, demonstrável, mas sim puramente especulativa, e não quero desperdiçar esse nosso encontro com devaneios. Você não é obrigado a abraçar meus sistemas de crenças e eu não sou ignorante a ponto de julgar que devam ser universalmente aceitos. Recuemos. Se você tem algum relacionamento mínimo com a metafísica, remova esse véu com seus próprios meios; do contrário, reconheçamos juntos a sua intransponibilidade e bailemos com a luz da vida, do conhecimento e do dia enquanto ela nos é facultada.
Divirta-se!
Notas:
1. Leia Trancar
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